Ana Sá 11/07/2023
Somos todos Bentinho
Talvez o maior tribunal da literatura brasileira tenha sido montado em "Dom Casmurro", de Machado de Assis. Nele, nosso olhar sobre Capitu passa pelo olhar que lançamos à perspectiva de Bentinho. E isso é inquietante, não é? Por que eu concordo ou duvido dos juízos do narrador? O que o julgamento que faço de Capitu diz sobre mim e sobre os meus próprios valores?
Em "Crônica da casa assassinada" (1959), Lúcio Cardoso faz das personagens e também das leitoras seus "Bentinhos". A decadência material e moral de uma família mineira nos é revelada através de uma pluralidade de vozes narrativas e de gêneros textuais: "Carta da personagem X"; "Diário III da personagem Y"; "Continuação da confissão da personagem Z", e por aí vai. O elo temático desses relatos cheios de questionamentos envolvendo sexualidade, identidade de gênero, moral, religião? A nossa aprendiz de Capitu, a sedutora Nina.
Nina deixa o Rio de Janeiro rumo à chácara da família Meneses após se casar com Valdo, e não tarda a causar incômodo devido à sua personalidade e beleza. No meu caso, foi inevitável lembrar do podcast "Praia dos Ossos", que trata do assassinato da modelo/socialite brasileira Ângela Diniz, ocorrido em 1976. Tal como Ângela, Nina, de início, parece ser odiada simplesmente por ser deslumbrante. E é assim que ela conquista a antipatia (para dizer o mínimo) de seu cunhado Demétrio e de sua esposa Ana. Timóteo, o irmão renegado, é o único da família, ao lado da governanta Betty, a dar uma chance à nova moradora. Somam-se a eles figuras como o médico da família, o padre da cidade, e, o mais importante, André, filho de Nina e Valdo, responsável, inclusive, por abrir o livro.
Aliás, devo avisar que o capítulo inaugural chega com os dois pés no peito da leitora; para mim, já este capítulo contém spoiler, pois é a partir dele que, impactadas, passamos a ser conduzidas por um mistério que nem entendemos direito qual é. Não há na obra uma charada evidente do tipo "quem matou?", mas (inexplicavelmente) ficamos (literalmente) até a última página aguardando respostas para uma pergunta que ainda tentamos formular. Eu mantenho o meu argumento de que aqui "somos todos Bentinho", mas igualmente arrisco dizer que nos tornamos todos Sherlock Holmes. Caímos quase que em uma leitura paranóica, desconfiando não só das personagens, mas até mesmo da nossa própria leitura. Acho improvável que alguém fique indiferente a este livro. Pro bem ou pro mal, é uma obra com a qual estabelecemos uma relação intensa.
E é este envolvimento hipnotizante com a leitura, gerador de bom entretenimento, que me fez manter uma nota de avaliação alta, apesar de ter percebido diversas falhas estruturais (sim, eu passei um pano pro Cardoso!). As personagens são bem construídas, não há aqui "mocinha x bandido", mas a mudança da personalidade dos relatos e dos escritos de cada personagem não é feita à altura. Não só falta diferenciar mais as vozes narrativas, como também uma mesma personagem, ou um mesmo tipo textual, muda muito de tom de um relato pro outro. Além disso, há enrolação demais neste livro! E não se trata de impaciência da minha parte, não é questão de estilo do autor, é enrolação pura e simples. Cansa e não acrescenta. Por exemplo, eu fiquei satisfeita com o desfecho da narrativa em muitos sentidos, mas a escolha de Cardoso por reservar a grande revelação da história para as páginas finalíssimas com certeza ("com certeza" = na minha opinião) prejudicou seu projeto de texto. É uma pena, porque talento fica evidente que o escritor tinha (aliás, que escrita sensorial!).
Na minha visão, Cardoso quis arriscar muito neste romance e não conseguiu vencer todas. Porém, a meu ver, sua multiplicação de Bentinhos já justifica seu lugar na estante dos clássicos brasileiros. Que Bentinho desta obra eu escolho para chamar de meu? O que as personagens dizem sobre Nina e o que eu faço com aquilo que me dizem? E, afinal, o que a imagem que tenho de Nina diz sobre mim enquanto leitora e, por que não, enquanto pessoa?
Clarice Lispector era apaixonada por Lúcio Cardoso. Talvez se ela tivesse realizado uma leitura-amiga antes da publicação deste romance algumas saliências teriam sido lapidadas. Mas, por sorte, o mel que seduziu Clarice resvala nas leitoras. E como acontece com o amor maduro, abraçamos o amado mesmo ciente de seus defeitos. Não é perfeito, longe disso, mas é intenso enquanto dura.
Obs.: Timóteo é uma personagem sensacional, ainda mais se consideramos o ano de publicação da obra. Não falei dele na resenha para evitar spoilers. Mas fica aqui a minha menção mais que honrosa a essa personagem e ao papel e ao lugar por ela ocupado neste livro. Primoroso!