Pandora
23/08/2021Conheci Lúcio Cardoso em “Dias Perdidos”. Ali já senti a grande carga emocional que acompanha os escritos do Lúcio: os tormentos da alma. Seus personagens não são felizes e vivem em eterno conflito. Neste A casa assassinada ele vai além, desconstruindo valores e derrubando um a um os alicerces da família tradicional que tal e qual a Casa do romance, soberba e majestosa em sua aparência, tenta esconder onde apodrece.
Os Meneses são a família mais famosa da pequena Vila Velha, em Minas Gerais. A família do Barão é a mais rica, mas quem alimenta o boca-a-boca na cidade são os Meneses. Embora na época em que se passa a narrativa só haja homens entre eles e o irmão mais velho, Demétrio, seja supostamente o líder familiar, são as mulheres a força do clã. É da extravagante e carismática mãe destes homens e de uma lendária tia durona e independente que todos se lembram. O patriarcado é frágil, inapto e inerte diante da realidade da situação atual da família.
A Chácara é ao mesmo tempo prisão e fortaleza. Reclusos, os Meneses vivem fechados numa casa onde nem as janelas costumam ser abertas e onde nada de novo, dia após dia, acontece. Eles transitam sorrateiros pelos corredores e aposentos, mal se falam, não saem, não recebem ninguém.
Quando a bela carioca Nina chega à Chácara - casada com Valdo, um dos três irmãos da família -, os Meneses já estão se desmantelando, mas colocam em Nina todas as responsabilidades sobre o declínio do clã.
Neste romance polifônico, nada é o que parece e ninguém é confiável. Em mais de 500 páginas de cartas, diários, narrativas, confissões e memórias dispostas de forma não cronológica, Lúcio Cardoso deixa ao leitor a missão de analisar este vasto material e ir tirando suas conclusões. Que eventualmente são equivocadas pela confusão que os narradores provocam ao apresentarem versões diversas e imprecisas dos fatos.
Um romance denso, perturbador, por vezes indigesto… enfim: um livraço. Arrisco dizer que, ao lado de Graciliano Ramos, Lúcio Cardoso é meu escritor brasileiro preferido.
Lúcio Cardoso:
“Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar pela visão de uma paisagem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja, é contra Minas Gerais. Que me entendam bem: Contra a família mineira. Contra a literatura mineira. Contra o jesuitismo mineiro. Contra a religião mineira. Contra a concepção de vida mineira. Contra a fábula mineira." (Edição da Civilização Brasileira, 2018, pág. 9)
“Um jornal publica hoje a capa do meu livro a sair no mês próximo. Dois anos, e mesmo assim, menos tempo do que levei para publicar O enfeitiçado, que durante tanto tempo rolou em minhas gavetas. Mas apesar disto, é o suficiente para que eu perceba os defeitos da Crônica e avalie os lados por onde envelheceu. Isto me consola, imaginando que posso fazer melhor. Mas assalta-me uma grande melancolia, imaginando que também este tombará no silêncio e no desinteresse e que, independente de seus defeitos, que talvez só eu conheça, poderia ser uma obra-prima que encontraria a mesma repulsa e a mesma prevenção que vêm encontrando todos os meus outros livros…
Mas é de cabeça erguida que eu me preparo para suportar este desdém.” (Diários/Lúcio Cardoso, Civilização Brasileira, 2013, pág. 478)
Notas:
O romance foi adaptado para o cinema em 1971 por Paulo César Saraceni como A Casa Assassinada. Teve Norma Bengell como Nina e Carlos Kroeber como Timóteo, além de contar com trilha sonora de Tom Jobim (disponível no YouTube).
Foi também adaptado para o teatro por Dib Carneiro Neto e Gabriel Villela em 2011.
Outra adaptação para o cinema, com roteiro de George Moura e direção de José Luiz Villamarim deve acontecer em breve (dados de 2021).
A Rede Minas TV, através do canal no YouTube Imagem da Palavra, fez um especial chamado Centenário Lúcio Cardoso - Imagem da Palavra que é curto, mas muito interessante.