Gui 15/02/2021
Ateus, leiam esse livro. Cristãos, leiam também
Primeiramente, devo dizer que esse romance foi diferente de todos que já li em minha vida, ele é realmente único, fazendo com que me impressione cada vez mais com Saramago, ele é, sem dúvidas, um autor espetacular, suas histórias são simplesmente incríveis, sua ironia, ironicamente, é linda e sua escrita escassa de pontuações convencionais, que em um primeiro momento parece ser um fator dificultador, na realidade, apenas aumenta o encanto da obra.
Evangelho Segundo Jesus Cristo, assim como outros livros do autor, possui um realismo fantástico, que parte de um questionamento fantástico e o descreve de forma realista ("E se toda a população ficasse cega?": Ensaio Sobre a Cegueira, "E se ninguém fosse votar no dia das eleições?": Ensaio sobre a lucidez). Dessa forma, a obra, parte do questionamento "E se o evangelho fosse escrito de forma mais verídica? E se ele não fosse tão idealizado?" e a partir disso se constrói toda uma narrativa de como seria a "verdadeira" história de José e Maria, uma família tradicional judia, bem diferente da que constumeiramente imaginamos, juntos de seu primogênito Jesus de Nazaré, um homem que mesmo sendo filho de Deus, também é humano, e por isso erra e peca. Tudo isso narrado por Saramago com sua ironia sagaz, e cômica em alguns momentos, torna essa reinterpretação do evangelho espetacular.
Nesse evangelho, o autor faz inúmeras críticas que ao longo da história se mostraram muito pertinentes: ao retratar José e Maria como um verdadeiro casal judeu, uma união na qual há sim relações sexuais, afinal o matrimônio possui função reprodutiva, sendo inconcebível um casal ter apenas um filho sendo ainda fértil a mulher, Saramago critica o "idealismo" bíblico ao falar que uma judia, mesmo casada e mãe, continua virgem, além disso critica também o machismo exacerbado existente na cultura da época, narrando as relações entre os sexos diferentes e mostrando como as mulheres são tratadas como lixos, verdadeiras indigentes e seres impuros devido ao pecado original de Eva. Ademais, também tece criticas pesadas direcionadas a Deus, no caso ao do antigo testamento, o representando como egoísta e maléfico, para criticar as contradições bíblicas sobre esse ser que supostamente deveria ser luz e amor mas que trata seus súditos como cordeiros para o abate, que nunca cansa de castigar os judeus mediante um povo que os escraviza para depois matar esses mesmos escravocratas mandados por ele mesmo para salvar os escravizados, que manda dilúvios e pragas entre outras ações. Como se já não bastasse, a acidez de Saramago é tamanha que critica ainda os religiosos que muitas vezes ignoram propositalmente esse "antigo Deus" e consideram apenas Jesus ("E, por exemplo, veres para todo o sempre, como te venerarão em templos e altares, ao ponto, posso adiantar-to desde já, de as pessoas no futuro se esquecerem, um pouco do deus inicial que sou"). Todas essas críticas não estão diretamente explícitas, o autor para mostrá-las utiliza de sua ironia e das contradições dos fatos narrados (critica o machismo narrando o machismo como se fosse extremamente natural, e de fato era para os costumes da época), contudo, ao se encaminhar para o final elas se tornam um tanto que repetitivas e enjoativas, contudo o autor contorna essa situação com seus clássicos finais espetaculares e poéticos.
Em suma, foi uma obra crítica mas ao mesmo tempo divertida, afinal as ironias de Saramago dão um ar cômico que ao ler automaticamente vem esse pensamento: "Olha a audácia desse filho da puta". O choque com a cultural patriarcal dos judeus ortodoxos foi imenso mas como foi passada para um segundo plano dando seu lugar às críticas repetitivas a Deus (repetitivo não é sinônimo de falta de argumentação ou de construção, as críticas são sensacionais e muito bem articuladas, contudo como dito anteriormente acabam ficando enjoativas), reduziram o incômodo. Evangelho Segundo Jesus Cristo, é um livro que eu gostaria muito de ter lido anteriormente, de preferencia quando ainda era cristão, para me exaltar e me revoltar com essas heresias para que depois ao reler, perceber o quanto as pessoas mudam. Independentemente de sua opção religiosa, está é uma obra que sempre irei indicar pois cativa vários estilos de leitores: aos interessado em uma história boa, leiam, ela possui várias reviravoltas, revelações, cenas emocionantes e um final sensacional, aos que buscam críticas religiosas muito bem fundamentadas, leiam também, definitivamente é um prato cheio, agora aos leitores religiosos, digo que leiam também, é de suma importância entender ideais contrários às suas crenças, além de demonstrar uma aversão à intolerância, serve para para fortalecer seus próprios ideais, afinal esse livro é um verdadeiro teste de autoconhecimento, por isso recomendo para todos os cristãos, incluindo ao meu eu do passado, experimentem essa releitura da boa nova, veja se você realmente possui fé, pois caso não tenha, esse livro definitivamente te transformará, porem se o medo da mudança for grande demais, tudo bem, Saramago possui outros livros maravilhosos que também podem proporcionar prazeres incríveis ao lê-los.