Jose.Maltaca 11/11/2020
Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.
Por que há tanto sofrimento no mundo? Por que Deus assiste a seus filhos se digladiarem e não faz nada? Por que, além de ser conivente com as atrocidades, Deus ainda pune os homens? Por que Deus mandou seu filho único, munido das vontades inerentes à carne humana, para morrer infeliz e de maneira cruel? O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), livro magistral do soberbo escritor português José Saramago, não tenta responder a essas perguntas, mas as levanta de maneira ácida e dolorida. É uma obra que por vezes confunde, mas cuja bússola sempre aponta para a humanidade como sujeita aos desígnios arbitrários e idiossincráticos de forças aquém de seu poder. Por essas razões, o livro é herético ao interpretar a história de Jesus, mas o faz de forma a passar uma mensagem contundentemente ateísta – feito impressionante em um livro cujo objetivo mais superficial é a releitura de grande parte do Novo Testamento.
Em outras palavras, é um livro que não agradará a todos. Há bastantes trechos que subvertem totalmente a história bíblica, colocando o protagonista em situações inimagináveis a quem se acostumou à narrativa oficial. Todavia, nada é gratuito: Saramago sabe o porquê dos eventos transcorrerem da maneira como são descritos, carregando uma mensagem em prol da autodeterminação humana frente à barbárie que consigna a religiosidade cega. Ou seja, é um livro cujo intuito é o choque, mas um choque calculado. É uma ode à imaginação humana como vetor de suas próprias transformações – não à toa os pastores trazem alimentos no lugar de especiarias e riquezas a Jesus em seu nascimento. É a imaginação de Saramago que desmistifica a deificação exacerbada, o qual, por sua vez, exerce sua vingança contra o personagem de José, homônimo do autor. Não é surpreendente, portanto, que a obra se dedique extensamente a centralizar sua narrativa no pai de Jesus, o qual carrega todas as mazelas e culpas por ser vítima da vontade divina, sofrendo um amargo e doloroso fim.
Jesus, em um golpe de misericórdia contra o próprio pai mesmo após sua morte, renega-o e entrega-se aos desígnios do Pai Celestial. Aos poucos, porém, suas experiências o fazem convergir gradativamente ao seu lado terreno, ao perceber a arbitrariedade das forças que competem para a miséria humana. Suas últimas palavras, título desta resenha, resumem a transformação de Deus em força meramente ditatorial e indiferente ao sofrimento – o contrário do amor. Este foco na transformação de Jesus Cristo, contudo, apressou Saramago a tal ponto que grande parte dos principais eventos bíblicos transcorre ao final do livro, apressadamente. Não obstante, a genialidade empregada ao esmiuçar os eventos em enfoque – o diálogo entre Jesus, Deus e o Diabo é um dos melhores trechos que já li – tornam a leitura da possível Magnum Opus de Saramago indispensável.