GleLê 20/08/2023
Sob o abrigo de tragédias
A Montanha Mágica é um romance filosófico de formação, pois narra a transformação do jovem Hans Castorp descobrindo a verdade sobre si mesmo.
Hans Castorp é um engenheiro naval, que decide visitar seu primo Joachim Ziemssem, internado no sanatório Berghof com tuberculose. O romance se passa no início do século XX, durante anos de tensão que antecederam a Primeira Guerra Mundial.
Sanatórios era como se chamavam espécies de hospitais - pousadas especializadas no tratamento da tuberculose. Normalmente ficavam em lugares elevados, pois se acreditava que a cura da doença estava diretamente relacionada ao ar puro.
A visita programada para três semanas, se tornou sete anos, pois assim que chegou ao lugar adoeceu e ingressou naquele universo como paciente. Podemos dizer que Hans Castorp sai da “planície” para um plano mais elevado onde será transformado.
Em A Montanha Mágica, Thomas Mann nos mostra que certas percepções exigem um certo afastamento do cotidiano. Subir a montanha é uma metáfora utilizada para a tomada de consciência do personagem e do contexto da época em que Mann escreveu.
Não podemos esquecer que o autor escreveu as primeiras páginas da obra em 1912, paralisada para se dedicar ao tratamento da mulher, também com tuberculose; e retomada em 1919 já no final da Grande Guerra. Para finalmente ser concluída e publicada em 1926. Portanto, Mann sofreu influências dos anos de guerra para construir no enredo de A Montanha Mágica um microcosmo europeu, de forma que é justo considerar que:
"Seria, segundo ele [Mann], uma viagem à decadência; contudo, ele também a qualificou como a busca da ‘ideia do homem, o conceito de uma humanidade futura que vivenciou o mais profundo conhecimento da doença e da morte’...
BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno: dez grandes escritores. Trad. Paulo H. Brito. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; p.110.
Cada personagem representa simbolicamente ideologias e tendências da época. É muito mais interessante observarmos os diálogos partindo desta consciência.
Leo Naphta, professor de línguas e marxista, representa o que Mann considerava obscurantismo autoritário do comunismo. Ao passo que Lodovico Settembrini, intelectual era a personificação do otimismo humanista. Os médicos do Berghof, como Edhin Krokowski e Hofrat Behrens trazem nas suas personalidades e falas a psicanálise e o cientificismo para o debate. Joachim Ziemssem, primo doente de Hans, jovem ativo e inconformado com a condição estática deseja descer à planície para servir ao exército. Joachim é o próprio militarismo.
Ao se afastar da planície, Castorp pôde gozar da liberdade da vida normal através da sensação de acolhimento e romantização da doença vivenciadas por todos ali. Os hóspedes de Berghof desligam-se do tempo, da carreira e da família ao mesmo tempo que são atraídos pela doença, pela introspecção e pela morte. Nesta jornada, Hans amadurece ao entrar em contato com a política, arte, cultura, religião, amor e filosofia e pode refletir sobre as fragilidades humanas e subjetividade do tempo.
O tempo é elemento fundamental na obra, ele reflete sua forma e tema.
Apesar de ordenada cronologicamente, a narrativa desacelera e acelera intencionalmente para denotar pela forma a monotonia daquele cotidiano. Esta assimetria temporal também corresponde à noção distorcida do próprio Hans quanto à passagem do tempo, assim como a mágica da montanha.
Para termos uma ideia de como a forma reflete o tema na obra, o primeiro dia de Castorp no sanatório é contado em nada menos que 180 páginas! Uma forma encontrada por Mann para anunciar que a dimensão psicológica do tempo prevalecerá ao longo da obra.
Lá, o tempo não passa. Não se tem nada para fazer além das cinco refeições, o descanso entre elas, a verificação da temperatura e o repouso na horizontal como descrito pelos médicos.
Esta parte do livro me trouxe à memória os meses de isolamento social devido a pandemia de COVID. Tal como Hans, assumimos uma rotina naturalmente monótona. O quanto de liberdade egoísta sentimos no nosso íntimo ao não poder fazer nada além do que já se fazia, que era estar onde estávamos? A liberdade na inércia, a desobrigação de ser algo foi o sentimento que muito de nós compartilhamos em nosso íntimo com Hans Castop.
A Montanha Mágica me levou a este lugar, e apesar de ser uma obra datada ela esboça o comportamento do homem diante das pressões sociais e as formas mais assombrosas que ele encontra de gozar a liberdade sem ter que investir tempo para isso; a liberdade do acometimento.