Isabel 23/06/2012No tempo dos Perfeitos as coisas eram bem simples: bastavam algumas palavras em voz alta para se obter qualquer bem de consumo desejado – roupas, pranchas voadoras e tudo que se possa imaginar. Isso pode parecer um desperdício horrível a primeira vista, mas não: naquela época eram todos Avoados, sem pensamentos próprios – portanto, sem criatividade ou ambição suficientes para causarem um estrago.
Mas com as novas mentes borbulhantes de seus habitantes, as Cidades temem a volta ao tempo de destruição ambiental e superpopulação dos Enferrujados – o que não é exatamente uma opção.
A Cidade onde Aya mora encontra uma solução bem criativa para esse dilema: aquele que quiser qualquer coisa além do essencial (leia-se medicamentos, comida e moradia) deve ou ter méritos – conseguidos através de trabalho, estudo ou ajuda a comunidade – ou ser famoso.
Mas por mais que se esforce, Aya não consegue passar da patética classificação de 451.396 no Ranking de reputação – o que significa na prática que pouquíssimas pessoas mencionam o seu nome ou sequer o sabem. O sentimento de não ser ninguém, dispensável e invisível a oprime. Aya não passa de mais uma na multidão. Uma Extra.
Mas os dias de “mendigar méritos” – ou seja, estudar e fazer bicos de babá – de Aya finalmente chegam ao fim: ao perseguir uma atleta famosa, a garota descobre um grupo de meninas que surfa em trens magnéticos – algo tão inovador que, se colocado no seu Feed, com certeza a faria subir várias posições no Ranking e finalmente deixar de ser uma Extra.
Com um pouquinho de atuação e um punhado de mentiras, Aya se torna parte do grupo. Mas não sem culpa: as novas amigas – incluindo a atleta – parecem detestar a fama e a fizeram jurar que não colocaria nada no seu Feed – promessa que ela obviamente não pretende cumprir.
A má sorte parece perseguir Aya: ser decapitada por um túnel enquanto surfa ou perder as imagens gravadas por Moggle, sua câmera, se tornam de repente seus menores problemas. Uma noite, dentro da montanha, ela e as outras garotas descobrem um grande segredo – armas, o tipo de coisa que as Cidades concordaram em não ter. Mais do que isso: o tipo de coisa que poderia tornar Aya definitivamente muito, muito famosa – além de provê-la com uma justificativa moral para a traição que cometeria ao colocar a matéria no seu Feed.
As melhores distopias são aquelas que exageram algum aspecto negativo da nossa realidade - de preferência um que nos passe despercebido. Scott Westerfeld é mestre nisso: depois de fazer uma ótima crítica a ditadura da beleza e a homogeneização do pensamento nos três primeiros livros da série Feios, o autor ora ironiza, ora idolatra os tempos modernos em Extras.
A Cidade onde o livro se passa é assustadoramente reconhecível: no seu Feed, Aya tem todos os seus passos, pensamentos e gostos documentados – assim como alguns (muitos) de nós em nossas páginas do Twitter ou Facebook. Afinal, quem não conhece alguém que faz o seu perfil de diário? Ou posta coisas “polêmicas” só para chamar atenção?
As “celebridades” de Extras também são como as nossas: algumas são famosas por serem odiadas; outras por de fato terem o que falar e uma parcela incomodantemente grande simplesmente são famosas por terem nascido.
Em Extras, o maior problema de toda a série é sanado: Tally. Embora ela apareça no livro, o fato de que é Aya a protagonista dessa vez faz com que sua arrogância incomode menos. Aya é, aliás, adorável: é perceptível de que sua obsessão com a fama não é exatamente sua culpa, e a evolução da personagem durante a trama é enorme.
Na capa da minha edição há, como é comum, aquelas detestáveis críticas hiperbólicas de jornais e revistas, recortadas de um jeito tal que se tornem ainda mais exageradas. Doí-me muito ter que concordar, mas o The Times está certo: Scott Westerfeld capturou o Zeitgeist como ninguém. De forma simples, todos os anseios e manias da minha geração estão em uma série distópica que, como livros individuais, não é lá grande coisa – mas é fantástica se pensarmos o conjunto das quatro obras.
Extras é um livro que não deveria nem existir: Scott Westerfeld havia planejado Feios como uma trilogia. Nesse adeus, já sinto saudade: mais uma para a minha lista de “perdas literárias”.
Originalmente publicada em http://distopicamente.blogspot.com.br