Leila de Carvalho e Gonçalves 22/07/2018
Dez Estrelas
Em "Cidade de Deus", Paulo Lins apresenta uma favela como metáfora da sociedade brasileira. Produto de uma exaustiva pesquisa, a obra apresenta várias tendências estéticas, explícitas ou sugeridas, durante o desdobrar dos acontecimentos.
Por exemplo, sua extensa narrativa apresenta características do Naturalismo, ao descrever o modo de vida das personagens. A infância dos bandidos é marcada pelo estreito contato com a natureza, já a maturidade revela a animalização, quando expostos a extrema violência de uma "selva urbanizada e primitivamente civilizada".
Outro aspecto marcante é o realismo. A partir de acontecimentos extraídos do dia a dia e por meio de uma linguagem peculiar ao ambiente descrito, o autor apresenta uma história isenta de sentimentalismos e incapaz de suavizar a crueldade dos fatos.
Porém, há ainda um caráter expressionista. Nela, há uma hiper-valorização da violência, expressa através da descrição grotesca e pormenorizada de cada crime como também nas atitudes de cada personagem.
Finalmente, merece destaque a marcante transformação da história após um longo período de anos, isto é, o conjunto habitacional vira favela, as crianças tornam-se bandidos, a polícia se corrompe, a natureza fica poluída... Num lento declinar onde não há lugar para a esperança.
É justamente essa mescla de estilos que mantêm o enredo polarizado e em constante tensão. "A realidade se contrapõe à ficção, a natureza à urbanização, a civilização organizada à anarquia, a ambição à simplicidade de vida e o progresso à decadência".
"Cidade de Deus" é um romance genial, indubitavelmente um dos principais registros do Brasil no final do século XX. No entanto, sua leitura exige redobrada atenção, pois são inúmeras personagens e uma incontável ramificação e sucessão de histórias que muitas vezes acabam abruptadamente como a própria vida nas favelas.
Com relação ao filme homônimo de Fernando Meirelles, nele está sintetizada a obra, mediante uma nova perspectiva moldada para outro veículo de comunicação. A adaptação do roteiro, indubitavelmente, foi uma tarefa complexa, três rascunhos antes de chegar ao definitivo, e não compreendo como o Oscar de "Melhor Roteiro Adaptado" fugiu das mãos de Bráulio Mantovani.
Portanto, eis dois excelentes programas em perfeita simbiose: o brilho de um, realça o do outro. Cinco + Cinco = Dez Estrelas!