Poema.Portela 02/05/2020
Kehinde: desterrada e transitiva
Uma narrativa que acompanha o desenvolvimento de uma personagem ao longo da vida é, normalmente, chamado de romance de formação. Mas, neste caso, para além da trajetória de Kehinde, acompanhamos a formação de um povo e, por que não dizer, de um país. A exaustiva pesquisa de Ana Maria Gonçalves nos garante o aprendizado sobre camadas da história do povo negro no Brasil que, sistematicamente, é negligenciada e distorcida.
Além da escrita fluida e envolvente, a maneira como as personagens são construídas pela autora é um presente. Ninguém fica sem nome ou sem história. A protagonista é marcada por uma complexidade condizente com o tempo que a acompanhamos. Suas contradições e falhas são o que a tornam crível, humana. Ora nos aproximando, ora parecendo uma completa estranha, como alguém que conhecemos há muito tempo e a quem dirigimos o pensamento de ?eu não te reconheço?. Mas, é na compreensão da complexidade humana que reside a beleza desse texto.
Não poderia, também, deixar de pontuar o encanto que me provocou a descrição minuciosa dos cultos e ritos de fé. Os gestos, as cores, os sons, as sensações são, muitas vezes, tangíveis no imaginário. É como estar lá. É como crer também. Diversas vezes, inclusive, senti vontade de compartilhar das mesmas crenças que as personagens, tamanha beleza.
Um outro aspecto que me despertou essa sensação foi a travessia de Kehinde por diferentes lugares. Ao passo que foi fascinante imaginar como seriam a Rua do Ouvidor e outros espaços que me são comuns no Rio, também fui infestada pela vontade de conhecer os demais lugares onde a personagem passa, refazer seus caminhos, suas memórias.
E é pelas memórias de Kehinde que tudo nos é descrito, o que, de alguma maneira, nos torna próximos a ela e, ao mesmo tempo, céticos. O quanto ficcionamos ao contar nossa própria história? O que relevamos, o que omitimos? Bem, de que importa? A versão que interessa, afinal, é a escolhida para contar sobre si. Neste caso, muito bem contada. Ana Maria Gonçalves torna cada página indispensável, um desafio em um texto tão longo.
Ao fim, o que fica é a sensação de que, a despeito da trajetória percorrida, Kehinde perdeu algo. Perdeu muitas coisas, na verdade. Mas, principalmente, um lugar para onde voltar. Não se sentir em casa em nenhum dos lugares que esteve é o que mais me marcou nessa leitura que, não se pode esquecer, nasce de um sequestro. Desterrada e transitiva, é como resumiria a vida de Kehinde.