Isabella.Wenderros 10/06/2022“Onde quer que vejais uma lenda, podeis ter certeza, se a investigardes a fundo, que encontrareis uma história”. Quando o Papa João VIII caiu de seu cavalo durante uma procissão em 855, a população ficou preocupada que o santo homem tivesse sido acometido por alguma doença e o alvoroço foi instantâneo. Porém, o caos foi realmente instaurado quando um recém-nascido surgiu por baixo das roupas cerimoniais e foi revelado que o papa era, na verdade, uma papisa.
Joana nasceu em Ingelheim em 814, filha de um inglês e uma mulher franca convertida à força ao cristianismo. Desde muito jovem, sua sede por conhecimento era imensa. Apesar dos castigos físicos impostos pelo pai, ela contou, primeiro, com a bondade de seu irmão para se alfabetizar e se desenvolver; quando isso não foi mais possível, por sorte – ou Providência Divina? – seus caminhos se cruzaram com um sábio homem que enxergou seu potencial e decidiu que iria incentivar aquela mente vivaz e curiosa. Aliás, o poder de raciocínio e de debate dessa personagem foi uma das coisas mais prazerosas de acompanhar durante a leitura. Joana desistiu de muitas coisas e experimentou muitas dores em uma época em que a sabedoria era um luxo para poucas pessoas – e todas elas do sexo masculino. Depois de uma tragédia, ela enxerga a possibilidade de criar uma vida nova para si ao abrir mão de sua identidade e adotar outro nome: é assim que nasce João Ânglico. Conforme sua inteligência é reconhecida, seus passos levam até Roma e é lá que aquela jovem sonhadora alcança a maior das glórias.
Joana vive uma luta interna constante: vestida como homem, mas sentindo e desejando como mulher; vivendo como um sacerdote cristão, mas duvidando dos desígnios, até mesmo da existência de Deus; racional, mas muito passional. Sua vontade de aprender, sua boa-vontade e seu tratamento justo para com o próximo são características reconhecidas por todos ao seu redor – mas, enquanto mulher, menosprezada; como homem, admirado.
Com uma escrita rica em detalhes, usando alguns personagens históricos, a autora recriou e me transportou para uma época na qual eu, com toda certeza, não gostaria de estar. Foi só na minha terceira tentativa que consegui finalizar o livro, não por ele ser ruim, mas por ser penoso ler sobre o tratamento dado às mulheres naquele período. Era algo que ultrapassava o machismo – misógino talvez seja uma palavra melhor. Apesar de ser um romance ficcional, no epílogo Donna deixa claro que acredita na existência de Joana e de seu “reinado” – que teria começado por volta de 853 e terminado em 855. Explicando detalhadamente todos os meios e motivos pelos quais Joana teria sido apagada, ela conseguiu me deixou uma pergunta no ar: será mesmo? Apesar de tudo que é tomado como certo, será possível que uma mulher tenha conseguido realmente ocupar o trono de São Pedro?
Como vários “E se...?’ da história humana, talvez isso nunca seja respondido. Particularmente, acredito que toda lenda tenha um pouco de verdade – aquele velho ditado de que onde há fumaça, há fogo. Se a Papisa Joana realmente existiu, eu não sei, mas confesso que teria sido uma coisa incrível ver uma mulher ocupando um lugar tão simbolicamente masculino. Seu fim também foi perfeitamente emblemático: uma mulher no momento da sua feminilidade mais visceral, atuando numa posição sempre tomada por homens.
Um mergulho em outro século, cheio de intrigas políticas e entremeado por um romance proibido. Recomendo!