Coruja 22/05/2015A primeira vez que tentei ler O Nome da Rosa, eu tinha uns dez para doze anos e terminei largando o livro de lado, traumatizada e complexada pela quantidade de vocabulário que não conseguia compreender. Isso me gerou uma bizarra aversão a Umberto Eco, que terminei por reencontrar pouco menos de dez anos depois, na faculdade... e aí foi amor à segunda vista.
Desde que me vi às voltas com Superinterpretação e Interpretação, Eco se tornou uma das paixões da minha vida e fui lendo tudo o que ele já publicou, fosse ficção ou não-ficção. Mas ainda relutava a voltar a esse volume; a lembrança daquela primeira leitura deixava-me bastante temerosa a tentar uma releitura para então descobrir que continuava sem entender lhufas.
Depois de muito enrolar, afinal tirei o volume da estante e a primeira coisa que atentei foi para uma nota que dizia que a nova edição publicada tinha sido revisada pelo autor para tornar o romance mais compreensível. Minha primeira reação foi “ok, então eu não fui a única a ficar viajando no livro!”. Minha segunda reação foi pensar “estamos então nivelando por baixo? Sacrificaram o livro para torná-lo mais palatável ao leigo?”.
Enfim... comecei a ler. Achei que ia ler um capítulo e parar, depois ler um capítulo e parar, depois mais um e parar para assim conseguir digerir o que tinha lido. A verdade é que li mais da metade do livro num dia só, sem querer largá-lo sequer para ir almoçar e no dia seguinte amanheci já com o nariz enfiado na história, terminando a segunda metade.
Cheguei à conclusão que transformei O Nome da Rosa da minha memória num bicho-papão. E, hilariantemente, tendo reencontrado o livro pelo menos uma década mais madura, ele agora se tornou um favorito.
Eco é um professor de semiótica, um estudioso da linguagem e, como tal, sua obra está recheada de referências linguísticas e vocabulário da época em que suas histórias se passam. Considerando que o centro da ação em O Nome da Rosa é um mosteiro medieval, isso significa que há frases e por vezes até parágrafos inteiros em latim.
Creio que a edição revisada traduz essas latinizações mais extensas, porque hoje em dia quase ninguém fora do curso de letras estuda algo de latim. Vejam bem, nem tudo é traduzido, mas o que continua em latim (e outros vernáculos) é compreensível pelo contexto – e, mesmo que não seja, é algo que serve mais para estabelecer o clima da história que para entender o que está acontecendo na narrativa.
Feitas todas essas considerações, vamos falar da história propriamente dita. O Nome da Rosa é narrado pelo monge Adso de Melk, que relembra eventos que ocorreram décadas antes, quando era ainda um noviço, e acabou por se envolver numa trama que misturava sexo, assassinatos, dogmas religiosos, e uma biblioteca labiríntica que serve de cobiça para muitos.
Adso é aprendiz sob as ordens do frei Guilherme de Baskerville, que deixou o serviço junto à Santa Inquisição para procurar verdade e conhecimento, tornando-se uma espécie de lógico silogista, discípulo de Roger Bacon e William de Occam.
Guilherme e Adso chegam à Abadia que serve de cenário para a história – e que é também a maior biblioteca da cristandade, reputada por seus inúmeros raros tomos e construída como um labirinto – para participarem de um debate entre facções clericais e são imediatamente surpreendidos com a descoberta do cadáver de um monge – e desse momento em diante os corpos começarão a se empilhar, seguindo um roteiro bíblico para disposição das mortes.
Guilherme é claramente uma versão medieval de Sherlock Holmes: britânico; fiel à lógica dedutiva através da observação; seguido por um companheiro cujas tentativas por vezes desastradas de acompanhar seus saltos de raciocínio emulam o próprio leitor e, claro, um sobrenome diretamente tirado dos romances de Conan Doyle são todos pistas bastante óbvias. Seu interesse nas investigações em torno dos assassinatos é menos pelas paixões humanas e mais pelo grande prêmio que todos parecem cobiçar: um livro misterioso com potencial para modificar dogmas doutrinários de seus pares.
O Nome da Rosa é, em realidade, um livro bastante sui generis. Ele começa como um romance policial, avança para um tratado de filosofia sobre fé e razão e a própria natureza da religião, tem lances de folhetim melodramático repleto de amores ilícitos e é, em sua totalidade, um estudo magnífico da cultura medieval.
Como entretenimento, funciona MUITO bem e somos pegos pelos mistérios que se concentram em torno da labiríntica biblioteca; como reflexão filosófica, é uma obra-prima sobre significado, interpretação e linguagem.
Como praticamente todos os livros do Eco, O Nome da Rosa permite vários níveis de percepção, sempre com uma sutileza impressionante. Por isso, é o tipo de volume para o qual você acaba retornando, e em cada releitura, descobre algo de novo.
Estou ridiculamente feliz de ter me livrado de meus preconceitos de infância e gostaria mais uma vez de agradecer ao meu antigo professor de hermenêutica: você pode não ter aparecido mais que duas vezes para dar aula em um inteiro semestre, mas pelo menos você me deu um motivo para me obrigar a ler Eco. Estou em dívida eterna com você.
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http://owlsroof.blogspot.com.br/2015/05/para-ler-o-nome-da-rosa.html