Tarcisio 17/11/2015
“No fundo só existiu um cristão e esse morreu na cruz. O Evangelho morreu na cruz!” (Friedrich Nietzsche, O Anticristo)
O Anticristo, obra do polêmico filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche, descreve claramente seu desprezo por aquilo que a religião cristã se tornou desde seu início, principalmente, a partir da pregação platônica do apóstolo Paulo. Portanto, é uma crítica ferrenha aos valores cristãos propostos em sua época. Afirma que o cristianismo é uma religião da decadence, herdeira do judaísmo. Porém, sua obra é mais que isso, é uma proposta para gerar a “transmutação de todos os valores” (Nietzsche, p.16).
Estruturada em 62 capítulos breves e sem muitas delongas dispara contra o seu alvo: “Pereçam os fracos e os falidos: primeiro princípio do nosso amor ao homem. É até preciso ajudá-los a desaparecer. O que é mais nocivo do que qualquer vício? – A piedade da ação com os fracassados e com os fracos: o cristianismo...” (Nietzsche, p.10). Portanto, para Nietzsche, a religião cristã é uma doença viciante e destrutiva: “Chamo o cristianismo a única calamidade, a única enorme perversidade interna, o único enorme instinto de ódio [...] única e imortal desonra da humanidade [...]” (Nietzsche, p.73).
Em seguida, dos capítulos V à VII e XVII à XIX, afirma que o cristianismo é a máxima corrupção do homem, entendendo-o no sentido de decadence. “Chamo corrompido, seja um animal, seja uma espécie, a um indivíduo que perde os seus instintos, que escolhe e prefere aquilo que lhe é prejudicial. [...] O cristianismo defendeu tudo quanto é fraco, baixo, pálido, fez um ideal da oposição aos instintos de conservação da vida sã; até corrompeu a razão das naturezas intelectualmente poderosas, ensinando que os valores superiores da intelectualidade não passam de pecados, extravios e tentações” (Nietzsche, p.11). Ou seja, o cristianismo prega o antinatural, pois prefere os valores que são prejudiciais ao homem, portanto, nega a própria vida, promovendo valores niilistas. Vê a compaixão como a pior fraqueza humana, pois contraria os impulsos vitais: “Chama-se o cristianismo religião da compaixão. – A compaixão está em oposição aos afetos tônicos, que elevam a energia do sentimento vital; opera de um modo depressivo. Quando uma pessoa se compadece, perde força.” (p.13). Dos capítulos VIII à XII declara os adversários do verdadeiro filósofo: “os teólogos e todo aquele que tem sangue de teólogo nas veias.” (p.13), pois, segundo o autor, esses são, bem como os sacerdotes, os propagadores de tais fraquezas. “O que um teólogo tem por verdade deve ser falso: é este quase um critério de verdade” (p.14).
Outro aspecto da crítica de Nietzsche vê-se nos capítulos XV à XXIII, quando afirma que o cristianismo é fuga da realidade, baseado num discurso de além-vida: “nem a moral nem a religião estão em contato com um ponto sequer da realidade. Só causas imaginárias (‘Deus’, ‘alma’, ‘eu’, ‘o livre-arbítrio’ – ou também ‘o não livre’); só efeitos imaginários (‘pecado’, ‘salvação’, ‘graça’, ‘castidade’, ‘perdão dos pecados’).” (p.18). Em seguida, compara o cristianismo ao budismo: “Ambas têm relação como religiões niilistas – são religiões da decadence -, mas ambas se acham separadas de maneira mais singular [...] O budismo é cem vezes mais realista que o cristianismo.” (p.22), elencando, dos capítulos XX ao XXIII, inúmeros aspectos em que considera a superioridade do budismo. Retoma, no capítulo LVII, alegando que “o budismo não promete, mas cumpre; o cristianismo promete tudo, mas não cumpre nada.” (p.44).
Dos capítulos XXIV à XXVI, refletindo sobre a origem do cristianismo, afirma que os instintos dessa é uma consequencia dos instintos judaicos: “não é um movimento de reação contra o instinto judaico, é a própria consequencia desse, uma conclusão mais na sua lógica terrorífica.” (p.26). Essa relação é retomada inúmeras vezes no decorrer da obra, nisso, é válido ressaltar a seguinte afirmativa: “O cristão, esta última ratio da mentira, é o judeu, ainda judeu, triplicemente judeu [...]” (p.47).
Explicita nos capítulos seguintes, XXVII à XXXIX, sua opinião sobre Jesus, sobre a psicologia do Salvador, ou seja, a real mensagem da boa-nova: “O que foi destronado pelo Evangelho é o judaísmo das ideias de ‘pecado’, de ‘perdão dos pecados’, de ‘fé’, de ‘salvação pela fé’, toda a dogmática judaica foi negada na ‘boa nova’.” (p.37). Afirma categoricamente que o dogma da divindade de Jesus, como Filho de Deus, segunda pessoa da Trindade é “um soco no olho – oh! em que olho – do Evangelho” (p.38), além disso, que Jesus não é Salvador de homem algum: “Este ‘grandioso mensageiro’ morreu como tinha vivido, como havia ensinado; não de qualquer modo para ‘salvar os homens’, mas para demonstrar como se deve viver.” (p.38). Além disso, alega que “no fundo só existiu um cristão e esse morreu na cruz. O Evangelho morreu na cruz. O que desde então se chamou ‘Evangelho’ era já o contrário do que o Cristo havia vivido: uma ‘péssima mensagem’, um dysangelium. [...] A prática cristã, uma vida tal qual a viveu o que morreu na cruz é o único cristão...” (p.41). Portanto, Nietzsche não apresenta em si nada contra o Cristo, critica a deturpação que ocorreu após a morte do Nazareno.
Discute de XL à XLIII, sobre o que aconteceu com o Evangelho após a morte de Jesus, onde afirma que seus discípulos a partir do questionamento de quem era Jesus, vão “elevar Jesus de uma maneira imprópria, separando deles, como noutro tempo os judeus, por ódio dos seus inimigos, se haviam separado do seu Deus para o elevar nos lugares altos. O Deus único, o filho único, ambos eram produções do ressentiment.” (p.44). Daí em diante, refuta seu verdadeiro “oponente”: o platonismo de Paulo, que segundo ele, “com aquela insolência rabínica que caracterizava em todas as coisas [...] converteu o Evangelho na promessa irrealizável mais digna de desprezo, a doutrina insolente da imortalidade pessoal... O próprio S. Paulo a ensinava ainda, como uma recompensa! [...] Nele se encarna o tipo contrário do “grandioso mensageiro”; o gênio no ódio, na visão do ódio, na implacável ótica do ódio. Quantas coisas sacrificou ao ódio esse ‘disangelista!’ Antes de tudo, ao Salvador: cravou-o na ‘sua’ cruz.” (p.44-45). Ou seja, o ataque de Nietzsche é contra um cristianismo baseado numa vida pôr vir (pós-morte), um reino de Deus fora da “única” realidade, com isso, retorna a condenar toda doutrina da ressurreição, alma, salvação e juízo final. Além disso, responde por que Paulo fundamentou a nova religião sobre o pilar do pensamento platônico: “A sua necessidade era o poder; com São Paulo o sacerdote quis ainda outra vez o poder; não podia servir-se senão de ideias, de símbolos, que tiranizavam as multidões, que formam rebanhos.” (p.45).
Escreve de XLIV à XLVII, sobre a falta de testemunho dos cristãos, numa vida sem ação evangélica; e usando de várias citações bíblicas, condena as contrariedades encontradas, em relação à mensagem central do Evangelho, no próprio Evangelho e nos demais livros do Novo Testamento. Questiona: “que se deduz de tudo isto? Que para ler o Novo Testamento é prudente calçar luvas. A isso obriga a proximidade de tanta imundície.” (p.50).
Nos capítulos seguintes, XLVIII à LV, partindo do mito da criação descrito na Bíblia, relaciona ‘ciência’, ‘pecado’ e ‘fé’, criações do sacerdote para dominar as multidões: “O Deus antigo foi preso de pânico. O próprio homem veio a ser o seu maior equívoco, havia criado um rival, a ciência torna igual a Deus, acabaram-se sacerdotes e homens, se o homem chega a ser científico! Moralidade: a ciência é a coisa proibida em si, só ela é proibida. A ciência é o primeiro pecado, o gérmen de todo o pecado, o pecado original. [...] O pecado, digamo-lo uma vez mais, essa forma de poluição da humanidade de ‘par excellence’ foi inventada para tornar impossível a ciência, a cultura, toda a elevação e toda a nobreza do homem; o sacerdote reina pela invenção do pecado.” (p.53-55). Em seguida, declara que “o cristianismo acha-se também em contradição com toda boa constituição intelectual [...], interessa-se por tudo aquilo que carece de inteligência e pronuncia anátema contra o espírito, contra a soberba do espírito são.” (p.57). Outro aspecto, nesse bloco, que o autor realça foi o erro das perseguições que deram vigor a doutrina cristã: “A morte dos mártires, seja dito de passagem, foi uma grande desgraça na história; seduziu [...], os mártires prejudicaram a verdade” e manda o recado aos seus adversários: “Julgais, senhores teólogos, que vos daremos ocasião de fazerdes papel de mártires das vossas mentiras.” (p.59).
Dos capítulos LVI à LVII, defende os escritos do código de Manu, “livro incomparavelmente espiritual e superior; nomeá-lo ao mesmo tempo que a Bíblia seria pecado contra o espírito” (p.63). Em seguida, de LVIII à LXI, descreve como o cristianismo transformou-se em religião universal graças à astúcia de Paulo: ao unir o conceito de fé ao pensamento platônico conquistou o poderoso Império Romano. Assim, o cristianismo fez perder “a herança da cultura antiga, fez-nos perder mais tarde a herança da cultura do islamismo” e por último, “estes impediram na Europa a última grande colheita da cultura que é possível alcançar: a da Renascença.” (p.70-71); nesse momento declara sua, a mesma guerra iniciada pela Renascença: “a transmutação dos valores cristãos; a tentativa empreendida com todos os meios, com todos os instintos, com todo o gênio, para dar a vitória aos valores contrários, os valores nobres...” (p.71).
Encerra a obra com o capítulo LXII, em que pronuncia seu juízo: “Eu condeno o cristianismo; faço contra a Igreja cristã a mais terrível das acusações que jamais acusador algum pronunciou.” (p.72). A partir dessa obra considera uma nova era, uma nova referência de contagem do tempo.
Recomendado tanto a estudantes de filosofia quanto aos de teologia, aos crentes e não crentes, mas, especialmente aqueles abertos a compreender o contexto histórico em que a obra se insere. Com certeza, a reflexão de F. Nietzsche fez com que os pensadores e líderes cristãos revisem as posturas do cristianismo. Essa afronta direta ao cristianismo, desse grande pensador moderno, continua desafiando a crentes dispostos a acolherem tal crítica a uma busca por um verdadeiro seguimento de Jesus Cristo.