Zuccari 28/02/2013
Cinquenta tons de sensacionalismo
Sempre fui da opinião de que, para criticar algo com propriedade, você precisa ter argumentos que fundamentem sua crítica. É preciso conhecer o objeto alvo da crítica para construir sua argumentação de modo que ela seja coerente e bem fundamentada. Não é uma questão de estar certo ou errado, e sim de possuir argumentos consistentes ou não. Essa minha opinião se estende aos livros. Critico, positiva ou negativamente, apenas aqueles que li.
A trilogia "Cinquenta tons de cinza" se tornou um sucesso literário contemporâneo, majoritariamente entre o público feminino, e muitos creditam esse sucesso ao fato de que, supostamente, na sociedade atual, as mulheres se sentem mais livres para falar sobre sexo devido à sua, também suposta, emancipação social e o livro em questão, tachado de romance erótico, dá a elas a oportunidade de ler, discutir e até mesmo aprender sobre o tema que, há alguns anos atrás, era um tabu entre elas. Mais que isso, alguns acreditam que o próprio livro é um instrumento de libertação feminina dos grilhões da opressão sexual. Tanto a autora, E. L. James, quanto as suas leitoras fervorosas, ao lerem, repassarem e discutirem sobre o livro estariam contribuindo para a emancipação da mulher ao falarem abertamente sobre um assunto tão polêmico. Pois bem, resolvi ler a trilogia para descobrir se essas conjecturas eram coerentes. Mas antes de criticar os livros e as opiniões citadas sobre eles, vamos à um breve resumo da estória de Cinquenta tons.
Anastasia Steele é uma estudante de Literatura de 21 anos, tímida, viciada em livros clássicos e virgem. Um dia, Anastasia vai no lugar de sua amiga Katherine Kavanagh entrevistar o grande empresário Christian Grey para o jornal da faculdade. Grey fez doações a faculdade de Anastasia e é, apesar de jovem, o dono de um vasto e rico império empresarial. O que a jovem Ana não sabe, mas logo descobre, é que Grey possui uma faceta, ou melhor, cinquenta facetas, que esconde do mundo. Ele é praticante de sadomasoquismo e a quer como sua submissa, com direito a contrato, limites rígidos e termo de confidencialidade. Porém, as coisas não ocorrem como o planejado por nenhum dos dois, eles acabam se apaixonando e Anastasia descobre que há muito mais coisas sobre Christian, principalmente em relação ao seu passado, que ela desconhece. Ao longo de toda essa trama, está o sexo. Convencional, masoquista, para todos os gostos. À primeira vista, a estória parece interessante e desperta a curiosidade, mas ao ler os livros pode-se perceber problemas que fatalmente o rebaixam a uma literatura regular.
Primeiramente, as personagens. As figuras retratadas no livro de E. L. James foram fracamente construídas. Não possuem profundidade psicológica, os diálogos entre elas são rasos e as atitudes extremamente previsíveis. Até mesmo as cenas de sexo, que seriam o ponto alto do livro, em determinado momento se tornam enfadonhas tamanha a previsibilidade e superficialidade das personagens. Ligado a isso, está a narrativa pobre da autora. Com uma estória clichê, personagens vazios e uma narrativa arrastada, James não é capaz de prender o leitor, pelo menos, não o leitor crítico. O livro é, na verdade, uma fanfic* da saga Crepúsculo. Não entrarei numa discussão sobre a qualidade literária da saga, apenas tenho a intenção de apontar que, tendo se inspirado na estória da saga escrita por Stephenie Meyer e em seus personagens, a autora parece ter transferido para a sua própria estória os mesmos erros cometidos por Meyer apontados por muitos críticos, que também se referem a pobreza e superficialidade da narrativa e das personagens.
Em segundo lugar, o propósito do livro. Me parece que a proposta inicial da trilogia é ser apenas um romance erótico voltado ao público feminino. Porém, como tudo que envolve sexo, foi criada pela mídia e pelos leitores toda uma representação simbólica acerca do desígnio da estória. Jorraram críticas inflamadas sobre a qualidade e relevância dos livros, exaltações a respeito da importância destes para as mulheres e sua libertação sexual, etc. Todavia, é preciso olhar além dessas opiniões do senso comum e procurar analisar qual o impacto real desta estória na sociedade. Olhando de maneira objetiva, existe sim um impacto porque existe uma mobilização social sobre esse assunto. Pessoas leem os livros, opinam, contra ou a favor, debatem, etc. Mas a questão é, o quanto disso é realmente relevante para a sociedade como um todo? Quero dizer, no que de fato toda essa mobilização em torno de um romance fictício contribui para nós? Alguns dizem que é uma forma de libertação da mulher que é sexualmente oprimida há séculos. Bem, isso pode ser facilmente objetado. A protagonista se envolve em um relacionamento com um homem controlador, ciumento, que a quer no papel de escrava sexual e reluta em aceitar que ela possa ter um trabalho, independência, uma vida além do relacionamento entre eles. Este breve quadro retrata um típico cenário machista que ainda hoje perdura na sociedade. Pois então, o que há de feminista e libertador em uma estória na qual a protagonista se apaixona por um machista que tenta mantê-la sob o seu domínio, posição que ela aceita de bom grado como se fosse um favor que ele presta a ela, o retrato de uma mulher submissa? Alguns diriam então que é a questão do sexo e do prazer feminino serem tratados tão livremente ao longo de suas páginas que fazem com que Cinquenta tons faça tanto sucesso e contribua para a libertação da mulher. Novamente, um grave equívoco. A protagonista, antes de perder a virgindade com Grey, jamais havia se tocado ou tido algum tipo de experiência sexual mais avançada com outra pessoa. O que há de libertador nisso? Ela só passa a aceitar sua sexualidade quando se coloca no papel de submissa de Christian, satisfazendo seus desejos. E isso, é liberdade? Não é porque o sexo é tratado incansavelmente ao longo das páginas de Cinquenta tons que o livro pode ser considerado como um instrumento na luta contra a opressão sexual. A luta feminista tem sido dura ao longo dos anos, e pretende-se que a mulher descubra sua importância, seu papel social, compreenda que, mais importante do que o que a sociedade diz que é ser mulher, é ser livre para escolher ser o que quiser, lidar com seu corpo à sua própria maneira e tomar suas próprias decisões sem precisar de um homem ou de quem quer que seja para mostrar a ela quem ela pode ser e aonde ela pode chegar.
No mais, acho que o livro é exatamente aquilo que se propõe ser, um romance erótico. Nada mais, nada menos. De má qualidade, porém, comprovadamente agradável o suficiente para conquistar milhões de leitoras ao redor do mundo. Não é minha intenção afirmar que a trilogia de E. L. James é algum tipo de apologia mascarada ao machismo. Tudo depende de quem lê e como esse leitor recebe e processa a mensagem lida. Logicamente, a trilogia está igualmente longe de ser um instrumento real para a emancipação feminina. Porém, se a estória de Anastia Steele contribui de alguma forma para que as mulheres se sintam mais livres e confortáveis em lidar e falar sobre sua sexualidade, que seja. Alguns tons a mais na vida não fazem mal a ninguém.
*Abreviação do termo em inglês fan fiction, que significa "ficção criada por fãs". São contos ou romances que fazem referência ou são apenas inspirados em filmes, livros, séries e coisas do gênero, criados por fãs.