Eric Rocha - Ersiro 18/10/2019
Possui valor histórico de análise social, jamais representativo
O Bom Crioulo, obra de Adolfo Caminha, com primeira publicação em 1895, é a primeira no universo literário do Brasil a trabalhar exclusivamente um romance gay. Nela são relatadas as desventuras de um relacionamento homoafetivo entre dois marinheiros.
O que sobressaiu do que li da história em si e da introdução, onde há inclusive frase do próprio autor defendendo seu escrito, afirmando que a obra "estuda e condena o homossexualismo" (p. 15), parece que Caminha trabalhou na criação do romance por vaidade literária, para afirmar ou ganhar destaque em tua posição como um artista do movimento naturalista em nome de uma suposta excentricidade; ou até mesmo rancor contra a Marinha, pois, para simplificar, o autor foi oficial deste ramo das Forças Armadas, casou-se com uma mulher que largou o marido — outro oficial — e Adolfo Caminha foi pressionado e obrigado a sair da Marinha.
Aqui, Amaro, protagonista negro e ex-escravo, é retratado como alguém obsessivo, controlador, pedófilo e manipulador. Aleixo, de 15 anos, o outro protagonista, branco, “corpo e rosto feminino”, de olhos azuis (ou seja, perfil europeu, responsável pela escravização de negros no Brasil), no início — e no fim é reforçado — apenas aturou Amaro porque devia-lhe favores (p. 112), o abomina não só pelo o que ele fez, o que, realmente não está errado, afinal foi abusado pelo outro, e afirma indiretamente em uma passagem que ser gay não é ser homem, mas ele sim o é, afinal, é hétero e se apaixona por uma mulher mais velha que assume a personalidade "homem selvagem" da relação: "[...] admirado para essa mulher-homem que o queria deflorar ali assim, torpemente como um animal." (p. 93), o que torna a posição de Aleixo indefinível no romance.
Quanto a relação Amaro-Aleixo, há uma espécie de inversão da escravização. Amaro submete de forma sádica Aleixo a uma relação abusiva e consequentemente a uma possível romantização do relacionamento abusivo, tornando a obra ainda mais problemática.
Ao passo que em momentos tenta descrever com passividade e naturalidade o relacionamento entre dois homens, aterra a demonstração logo em seguida, sempre corrobora na prerrogativa que ser homossexual é algo terrivelmente anormal e asqueroso, repudiando e condenando descaradamente como imoralidade social (p. 15) relacionamentos de "reversão sexual".
É importante ressaltar que o autor pautou teu escrito na pseudociência da época e experiência testemunhada (como já dito, Adolfo Caminha foi oficial da marinha).
Para fins de informação, é também importante lembrar que somente no final do século XX a homossexualidade deixou de ser considerada pela OMS como transtorno mental.
Como marco de um livro brasileiro voltado à relação homoafetiva, é a todo momento homofóbico e por vezes me questionei se também não é racista, uma vez que (e também reforçado pelo discurso do próprio autor em defesa de seu livro) para o movimento naturalista, o humano é influenciado pelo seu meio, momento que vive e pela raça, logo não é difícil concluir que, como é descrito no livro, um negro pode agir de forma agressiva e brutal em algum momento de sua vida como Amaro agiu, pois além do meio e momento, é negro.
Em síntese, em nenhum momento na obra há "redenção" em ser gay, pois é sempre retratado e julgado como uma "espécie" descartável fadada e amaldiçoada à tragédias e desgraças.
É diferente, por exemplo, do livro Teleny, atribuído a Oscar Wilde, escrito anos antes, onde há em um primeiro momento confusão por parte do protagonista por se sentir atraído a outro homem, porém em seguida questionamento, envolvimento, compreensão e aceitação.
Ainda assim, mostra o quão moralista e conservadora (o autor não podendo ficar fora dessa quando o assunto é homossexualidade) a sociedade retratada na obra pode ser cruel para com quem não se encaixa em seu padrão branco, hétero e cis. Possui seu valor histórico e nos permite observar uma evolução social da época em questão para a atual.
Hoje, reflete a problemática das pessoas que não fazem parte de um grupo, escreverem relatos fictícios ou não, sem o olhar crítico sobre, sem debater, sem sentir propriamente o incômodo da situação na qual se encontra aquela minoria e sem se preocupar em trazer um viés de desnaturalização para este grupo diante da estrutura social.
Por mais que a representatividade jamais será atendida, obviamente no lugar de fala onde você se encontra, pode (e deve) sim falar, discutir e escrever sobre um grupo de outro lugar, mas estando disposto a debater criticamente questões e problemáticas enfrentadas por eles e refletir em como você, compreendendo a sociedade e estando na estrutura de uma classe de poder pode colaborar com o alcance de menos desigualdade.
Nota: 1,5