Marcelo 29/08/2009
Por cinco vezes, eu me aventurei a ler o livro de Kafka, "O Castelo". Nas quatro primeiras, não consegui chegar ao seu final. Quem conhece o desfecho sabe como isso pode ser cômico. Do meu ponto de vista, esse fato já seria suficiente para atestar a genialidade que se estende ao longo das páginas desse romance sublime, rico e, literalmente, infindável. O protagonista se confunde com o leitor. O leitor se confunde com o autor. E o autor, na sua deixa final, refaz o livro, num círculo vicioso em que não se pode mais saber o que ou quem é o verdadeiro castelo a ser alcançado.
Finalmente, depois de algumas tentativas, consegui. E com prazer. O texto, que antes me parecia insuperável, dessa vez, atraiu-me com toda a sua riqueza de conteúdo e forma. Franz Kafka é, realmente, um dos maiores gênios da literatura. Na verdade, chego a me perguntar se o livro não tomou vida própria e escreveu-se sozinho. Em certas horas, ao parar a leitura por um momento, descobria que não era apenas o conteúdo da narrativa que eu lia. Havia também a forma e o estilo do texto que, sub-repticiamente, invadiam minha mente e recontavam, talvez de forma até mais precisa e marcante, a própria história. É como se, ao ler o romance, na verdade, eu o estivesse fazendo de duas maneiras simultâneas!!
K., o protagonista de nome curto e sugestivo, é contratado como agrimensor de uma aldeia. Não se sabe de onde vem, como era sua vida e, até mesmo, não se tem certeza de que ele foi realmente chamado para ser agrimensor. O fato é que ele almeja chegar ao Castelo, centro administrativo da aldeia, a fim de regularizar seu trabalho. Pelo menos, esse é o objetivo declarado de K. para justificar suas tentativas de chegar ao Castelo, mesmo que em nenhum momento haja alguma confirmação disso.
E é só. O enredo principal acaba aí, sendo retomado, eventualmente, para a condução de uma situação a outra. Mas a riqueza do livro começa a se mostrar nas peripécias absurdas em que K. se vê envolvido. Depois de poucas páginas, K. recebe dois ajudantes para o trabalho que nem realiza ainda. Os dois ajudantes, que se tornam um estorvo para K., e o trabalho, que não consegue desenvolver nunca, são os primeiros de uma série de fatos inesperados e antagônicos, mas que não deixam de se repetir como se fossem lugar-comum. Entretanto, a singularidade do texto não se esgota na surpresa dos fatos. Kafka ousa ir mais longe e busca sempre uma justificativa para a excentricidade de cada momento, de forma a transformar um comportamento à primeira vista absurdo em uma ação corriqueira e sensata.
Para tal, personagens incomuns se tornam necessários. Os ajudantes, apesar de crescidos, adotam atitudes de crianças levadas, e assim são tratados. Frieda, a noiva precoce e repentina de K., deixa o balcão de bebidas do albergue para se dedicar com devoção a K. Não é de se admirar que acabe por se revelar uma companheira do lar com interesses menos nobres no desconhecido agrimensor que chega à aldeia. A família de Barnabás, apesar de seu prestígio no passado, é rejeitada por todos como exemplo de mau comportamento perante o Castelo. E, como não poderia deixar de ser, em suas relações familiares, confunde virtude e vício com a atitude de suas moças, prostitutas dedicadas, acreditem, a reerguer o nome da família. Finalmente, há Klamm, a autoridade do Castelo mais próxima da aldeia. Tão influente e respeitado, nunca ninguém o viu. Mesmo sendo o grande tema das vontades e do trabalho da aldeia, Klamm é o representante da névoa que cobre o Castelo. Névoa que esconde o Castelo no dia-a-dia, deixando sua presença subentendida apenas pela sombra que os habitantes podem intuir ao longe, sem deixarem de saber que é tão real e efetiva quanto a própria aldeia.
A angústia, a frustração, a injustiça são temas comuns em Kafka. Mas não é apenas isso. Pelo contrário, essas características comuns do texto kafkaniano são apenas a superfície, a máscara. O livro trata, principalmente, de fé, esperança, determinação. Talvez Kafka seja muito mal interpretado por algumas pessoas... Seu possível pessimismo traz consigo, em toda a ambivalência do texto, um otimismo extremamente forte, na medida em que o protagonista - que, como disse anteriormente, já não posso dizer se é K., Kafka ou o próprio leitor - busca alcançar seu objetivo de forma quase irracional, mas com uma crença imbatível no sucesso de seus esforços.
A conclusão superficial do livro é a de que o castelo é apenas um pretexto para o desenvolvimento de uma história aparentemente sem muito sentido. Sua verdade final, porém, é a de que, no fundo, qualquer ação exige um pretexto, mesmo que incompreensível. O pretexto, o motivo, o sentido, sobrevive mesmo após as ações se esgotarem na sua ineficácia. O absurdo do agrimensor K. faz tanto sentido quanto a vida de cada homem sobre esta dura terra que compartilhamos. No fim, não importa que se chegue ou não ao Castelo. Afinal, o caminho é intransponível. Caminhar através dele, entretanto, é inevitável.