Mariana 09/11/2019então, uma caméliaA Elegância do Ouriço fala da vida no edifício do número 7 da Rue de Grenelle, em Paris. Neste condomínio de ricos, em que convivem várias personalidades unidas pelo fato comum de terem muito dinheiro, surgem nossas duas narradoras: Renée Michel, de 54 anos, a concierge do prédio, e Paloma Josse, de 12 anos, criança superdotada e moradora do prédio. As duas nos apresentam suas percepções e vidas dentro daquele mundo francês-cartesiano-burguês-safado que se apresenta na Rue de Grenelle.
De cara nas primeiras páginas, uma curiosa contradição nos é posta: a concierge, filha de camponeses, nascida na miséria, é extremamente apaixonada por literatura, se interessa por filosofia, artes, e tudo aquilo que é digno de atenção dentro da cultura erudita formal. Faz análises sobre a luta de classes e enxerga com clareza as hipocrisias dos moradores do prédio, assim como sua incapacidade de ver além de suas próprias crenças narcisistas:
"Como sempre, sou salva pela incapacidade dos seres humanos de acreditar naquilo que explode as molduras de seus pequenos hábitos mentais".
A sra. Michel tenta ao máximo corresponder à crença social associada à sua profissão de governanta/zeladora do prédio. A sua máxima é que sua existência é mais uma das milhões de engrenagens que alimentam a ilusão universal de que a vida tem um sentido.
Já a menininha, a srta. Josse, esta pretende se suicidar no próximo mês de junho. De ar grave e recluso, extremamente debochada, é encantada com a cultura japonesa e crê com todas as forças que sua família extremamente rica é um completo desastre.
"Entre as pessoas com quem minha família convive, todas seguiram o mesmo caminho: uma juventude tentando rentabilizar sua inteligência, espremer como um limão o filão dos estudos e garantir uma posição de elite, e depois uma vida inteira a se indagar com pavor por que essas esperanças desembocaram numa vida tão inútil."
O livro é escrito em primeira pessoa pelas duas, como forma de registro do cotidiano e desabafo. A autora é filósofa e por isso, imagino, o livro é emprenhado de reflexões e críticas. Algumas mais sérias, outras gostosas de se ler por conta do tom de chacota.
"Nesses dias, em que soçobram no altar de nossa natureza profunda todas as crenças românticas, políticas, intelectuais, metafísicas e morais que os anos de instrução e educação tentaram imprimir em nós, a sociedade, campo territorial cruzado por grandes ondas hierárquicas, afunda no nada do Sentido. [...] Nesses dias, precisamos desesperadamente da Arte."
As divagações das personagens percorrem assuntos como a farsa das elites, a gramática, as tradições japonesas, o darwinismo, o consumismo, a falsa intelectualidade, a fenomenologia e as banalidades do dia-a-dia. Além disso, presta sincera homenagem à beleza da arte em meio ao absurdo da vida.
"Refletindo sobre isso, esta noite, com o coração e o estômago em migalhas, pensei que, afinal, talvez seja isso a vida: muito desespero, mas também alguns momentos de beleza em que o tempo não é mais o mesmo."
Narrativa inteligente, debochada, bonita. Foi o meu melhor livro de 2019 até agora (e olha que já estamos em novembro), não necessariamente por sua qualidade técnica/literária, mas porque li no momento em que devia ter lido. Lindo livro.