Rose 17/08/2020
A Elegância do Ouriço - Muriel Barbery
"Talvez seja isso a vida: muito desespero, mas também alguns momentos de beleza em que o tempo não é mais o mesmo."
O livro A Elegância do Ouriço de Muriel Barbery foi o meu quarto livro da quarentena. Eu sempre estou lendo algo, sempre! Termino um livro e já começo outro em seguida, no entanto, há algum tempo tenho notado uma queda drástica no meu ritmo de leitura. Já cheguei a ler em média quatro livros por mês, porém nos últimos tempos estava demorando quatro meses para ler um único livro. Então, quando começamos o isolamento social por conta da pandemia, decidi voltar a ler com mais frequência. E, para minha sorte, fui convidada por um amiga a participar de um Clube de Leitura. O livro A Elegância do Ouriço foi o primeiro livro do Clube e hoje mesmo tivemos uma live maravilhosa em que pudemos discutir sobre nossas experiências de leitura.
Confesso que quando soube qual seria o livro a ser lido no Clube fiquei um pouco desmotivada. Pelo título não pareceu ser o estilo de livro que geralmente aprecio. Julguei o livro pelo título e pela capa. Fui totalmente preconceituosa, entretanto dei uma chance e fui surpreendida positivamente, pois cativou-me desde a primeira página. O livro é muito filosófico, muito questionador e nos deparamos com inúmeras frases que são verdadeiros tapas na cara. Frases nuas, cruas e que nos faz refletir sobre a vida, sobre como vemos o mundo ou se estamos vivendo de acordo com o que acreditamos. É uma verdadeira viagem de autoanálise e de autoconhecimento. Somos motivados pelas personagens principais que estão justamente nessa onda filosófica.
O livro A Elegância do Ouriço nos conta as trajetórias de Renée e Paloma, que são as duas narradoras e personagens principais. Renée é uma mulher de 54 anos, concierge (porteira) de um condomínio de luxo em Paris. Ela trabalha lá há mais de 20 anos. Renée nasceu e cresceu em uma fazenda no interior da França. Sua família era muito pobre e não tinha muitas perspectivas de futuro. Sempre foi muito inteligente e desde nova via o mundo de forma diferente, com muita reflexão e consciência. Ela tinha uma visão pessimista sobre a vida e sociedade, além de uma visão depreciativa sobre si mesma, pelo menos referente a sua aparência física. Em um determinado momento ela diz:
"Ser pobre, feia e além do mais inteligente condena, em nossas sociedades, a percursos sombrios e sem ilusões, aos quais é melhor se habituar cedo. A beleza se perdoa tudo, até mesmo a vulgaridade. A feiura em compensação, já é sempre culpada, e eu estava fadada a esse destino trágico, sentindo mais dor ainda na medida em que não era boba"
Renné acabou se casando, na primeira e segundo ela mesma, surpreendente oportunidade que teve, e se mudou para Paris onde começou a trabalhar como concierge junto com o marido. Estava habituada a conviver com pessoas que possuíam um alto padrão social e as considerava fúteis, superficiais e pobres de espírito. Sendo muito inteligente e totalmente apaixonada por arte consumia bastante música, cinema e literatura, porém preferia omitir do mundo essas paixões. Fingia ser ignorante por aparência, ou seja, para manter o esteriótipo associado a sua função. No decorrer do livro ela faz muitas críticas a sociedade, principalmente sobre os mais abastados financeiramente, como seus patrões:
"Assim como os ricos se convencem de que a vida deles segue um rastro celeste que o poder do dinheiro lhes abre naturalmente"
"É um homem que renegou tanto tudo o que podia haver de bom dentro dele, que parecia um cadáver, quando porém, ainda estava vivo. Porque os maus de verdade detestam o mundo inteiro, sem dúvida, mas, sobretudo, a si mesmos."
E realmente percebemos, a partir do comportamento dos moradores daquele condomínio de luxo, que Renné tinha razão. Eram pessoas que se julgavam superiores, que viviam em seus pedestais hierárquicos, que não respeitavam ou sequer enxergavam aqueles que lhes serviam:
"É tocar o fundo do pântano social ouvir, pelo tom de sua voz, que um rico só se dirige a si mesmo e que, embora as palavras que pronuncia sejam tecnicamente dirigidas a você, eles nem sequer imagina que você seja capaz de compreendê-las"
Um dos trechos que mais me marcou no livro foi quando Renée descreveu a total indiferença dos moradores do condomínio diante do falecimento de seu marido:
"Já que éramos concierges, pareciam favas contadas que para nós a morte era como uma evidência no curso dos acontecimentos, ao passo que para os ricos se revestiria dos trajes da injustiça e do drama. Um concierge que se apaga é o ligeiro vazio no cotidiano, uma certeza biológica que não está associada a nenhuma tragédia, e para os proprietários que cruzavam com ele todo dia na escada ou na porta de seu cubículo, Lucien era uma não existência que retornava a um nada do qual jamais tinha saído, um animal que, por viver uma semivida, sem fasto nem artifícios devia talvez, no momento da morte sentir apenas uma semi-revolta. "
No entanto, descobrimos que Renée não era a única que vivia de aparências. Nos são revelados também os esforços dos outros moradores para se manterem em seus pedestais, mesmo que para isso seja necessário grandes doses de calmantes. Nesse perfil podemos incluir a família de Paloma, nossa segunda protagonista. Paloma é uma adolescente de 12 anos, super inteligente e, por mais estranho que pareça, com pensamentos suicidas. Assim como Renée ela não se sente parte daquele mundo e tem verdadeira repulsa pela vida superficial e fútil que sua família possui. Sente-se condenada àquele destino e não vendo alternativas, começa a enxergar na morte uma solução. Ela também possui uma visão pessimista do mundo e da sociedade, como podemos ver nos trechos abaixo:
"Aparentemente, de vez em quando os adultos têm tempo de sentir e contemplar o desastre que é a vida deles."
"As pessoas creem perseguir as estrelas e acabam como peixes vermelhos num aquário."
"Então não vamos gastar todas as nossas forças para nos convencer de que há coisas em que valem a pena e de que é por isso que a vida tem um sentido."
"O homem não progrediu muito desde seus primórdios: continua a crer que não está aqui por acaso e que deuses em sua maioria benevolente zelam por seu destino."
Mesmo vivendo no mesmo condomínio, Paloma e Renée, apesar de se conhecerem, não possuem uma relação. Cada uma vive isolada em seu mundo. Ambas possuem apenas uma amiga e apreciam a solidão. No entanto, a chegada de um novo morador ao condomínio, o simpático senhor Ozu, acaba por transformar essa realidade. O destino dos três se cruzam e são metamorfoseados por completo.
A Elegância do Ouriço nos traz muitas reflexões sobre a vida, sobre nossa sociedade, sobre as diferenças de classe, sobre as hierarquias e exclusões sociais, aborda traumas e como a arte pode nos salvar de muitas maneiras. O livro nos ensina também que a vida pode nos surpreender incrivelmente, tanto positivamente, como negativamente, que devemos ignorar esteriótipos, que existem pessoas inteligentes, boas, interessantes, chatas, medíocres ou ignorantes independente de credo, classe, raça ou nacionalidade, que somos capazes sim de mudar o nosso destino e principalmente, que a vida pode ser de fato muito dura, mas que devemos continuar perseguindo suas belezas incansavelmente.
"Pois existe distração mais nobre, existe mais distraída companhia, existe mais delicioso transe do que a literatura?"
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