spoiler visualizarIsa Beneti 28/07/2020
Para além da Indêpendencia: tribalismo e questões universais
Uma história diferente de tudo o que já li. Já tinha tido contato com diversos livros que descreviam batalhas, a maioria delas ficcionais, mas a descrição da vida e dos conflitos de guerrilheiros revolucionários lutando pela independência do seu país no meio do Mayombe foi realmente algo singular de se ler. Mas, acima de tudo isso, o mais impressionante nessa obra são com certeza os diálogos, construídos de uma forma cativante e que me levaram a praticamente engolir o livro!
Outra característica da história que impressiona muitos leitores é o seu caráter filosófico: por meio do personagem Sem Medo e da polifonia, Pepetela consegue tratar de várias questões universais como o medo, o amor, o ciúme, a natureza humana (que, segundo sem medo, é baseada na ignorância: todo ser humano é ignorante e nada é feito com desinteresse). Para mim, no entanto, essa característica é um dos pontos fracos da obra: tive a impressão de que tais questões filosóficas são inseridas no texto de uma forma muito superficial, quase que sem contexto, e de maneira muito explícita. Não é como se os acontecimentos da obra conduzissem o leitor a ter reflexões de maneira natural: as reflexões são simplesmente "jogadas" no texto, já prontas.
As únicas questões que para mim pareceram "coerentes" com o enredo foram as relacionadas ao tribalismo (conflito entre tribos que teve origem na Partilha da África e que resultou em diversas guerras civis nos países africanos) existente dentro da MPLA, um preconceito que vai contra o próprio ideal comunista pregado por eles. Mas ao final os guerrilheiros percebem que estão todos lutando pela mesma causa e que essencialmente são todos os mesmos. Além disso, as discussões e críticas voltadas à ideologia marxista, presentes nos diálogos entre Sem Medo (que critica os que tratam essa ideologia como uma religião) e Mundo Novo, também são interessantes e coerentes.
Outro ponto fraco do livro, na minha opinião, foram certos aspectos superficiais das personagens. Não posso negar que elas são MUITO bem construídas: todas têm histórias e pontos de vistas interessantes, explicitados nas passagens em que assumem primeira pessoa (polifonia). Entretanto, não vi muita complexidade além disso, o melhor exemplo é o próprio protagonista, que é o "mocinho" honrado da história e a caricatura de um sábio intelectual. Comissário, por sua vez, é caracterizado por sua imaturidade (também presente no novato Vewê) e sua inconstância emocional. Teoria é um mulato que tem como características marcantes a crise de identidade, o medo e a tentativa de superação dele. Mundo Novo é simplesmente um marxista teórico. André é a figura de burocrata "vilão". Talvez a personagem mais complexa seja a única mulher do romance: a inteligente, sensual e libertina Ondina, ex-noiva de Comissário. Os diálogos entre ela e Sem Medo são impactantes.
A história em si, apesar de ser envolvente, também foi a responsável por tirar alguns pontos da minha avaliação, já que ela é um tanto exagerada e inverossímil (sobretudo seu desfecho). Esse exagero pode ser percebido logo no primeiro capítulo "A Missão", em que os guerrilheiros atacam uma área de exploração dos tugas (portugas), sequestram os trabalhadores angolanos e os "convertem" para o Movimento. Nessa ocasião, um dos guerrilheiros rouba dinheiro dos trabalhadores. Comissário, ao achar o responsável pelo roubo, pune-o e realiza todo o perigoso trajeto de volta apenas para entregar o dinheiro de volta à população! Como eles são bonzinhos! No capítulo final um desses trabalhadores até se oferecerá como guerrilheiro ao Movimento!
O segundo capítulo, "A Base", descreve a chegada de novatos à base de Mayombe, que são batizados com nomes de guerra e logo começam suas aulas. Essa parte mostra a rotina dos guerrilheiros e a valorização que eles davam aos estudos (sobretudo ao estudo dos conceitos marxistas). Nesse capítulo estão presentes alguns dos melhores diálogos de Sem Medo a respeito do seu ponto de vista sobre a ideologia socialista. Ainda nesse capítulo há a viagem sem sucesso de Comissário a Dolisie em busca de comida, onde rivaliza com o camarada André e encontra sua noiva Ondina.
Em "Ondina" fica-se sabendo que Ondina traiu Comissário com André, o que foi o início de uma série de conflitos amorosos mau resolvidos entre o casal, o que leva Comissário a surtar e brigar com o Sem Medo (com quem tinha uma relação quase que de pai e filho). André é punido, mas continua recebendo apoio dos que são da mesma tribo que ele (kikongos), enquanto é condenado pela tribo opositora (kimbundos).
"A Sucururu" é um capítulo que termina cômico apesar de narrar uma situação extremamente tensa: a notícia sobre tomada da base pelos tugas. Essa nova é trazida pelo novato Vewê e leva o Comandante (que estava em Dolisie) a organizar um ataque contra a base supostamente dominada. Mas ao final descobre-se que, na realidade, ela não havia sido tomada desde o começo: o novato apenas se confundira com o som de tiros (que eram apenas tiros para matar uma Sucururu).
O último capítulo, "A amoreira", é muito tenso e emocionante, pois narra o ataque dos revolucionários a uma base tuga. Nela, Comissário, ainda brigado com Comandante, sai à frente de todos, e Sem Medo morre tentando protegê-lo e é enterrado ali mesmo, próximo a uma amoreira no campo de batalha. É uma cena final bem exagerada e com uma boa dose de sentimentalismo.
No geral, foi uma leitura muito interessante não só para conhecer mais sobre a história da Angola, um país tão oculto nas disciplinas escolares, mas também para refletir (mesmo que de maneira superficial) sobre questões da natureza humana e do tribalismo nessa região africana.