TatáVasconcelos 04/08/2015
Matando Um Tigre Por Dia... Digo...
O livro começa com um relato bastante extenso, que deveria ser desagradável e pouco encorajador, sobre a rotina de um zoológico indiano: uma longa lista de considerações acerca da vida no zoológico ser proporcional para os animais à vida na selva sob muitos aspectos; embora o habitat cercado seja consideravelmente menor, ele atende a todas as necessidades para a sobrevivência e bem estar dos bichos.
Em meio a este relato, há outros dois pontos igualmente abordados: a peculiaridade desagradável no nome do protagonista, Pi Patel (Pi é o apelido de Piscine, que deveria ser dito na pronúncia francesa, mas em inglês soava como o verbo “pissing”, que significa “mijando”), e a confrontação de seu respeito e amor pela religião com as opiniões de alguns ateus; além de sua confessa devoção e prática de três religiões diferentes: o hinduísmo, o cristianismo e o islã.
O primeiro e o terceiro assunto (o segundo tinha o mérito de ser engraçado), poderiam ter me desanimado a prosseguir com a leitura. Afinal, estamos falando de nada menos que 28 capítulos! Pois é... Poderia...
A princípio, o livro parece um extenso manual de “como criar e administrar seu próprio zoológico”. Obviamente, estas páginas que, falando desse jeito, podem parecer maçantes, mas garanto que não o são, foram escritas com o objetivo de explicar os eventos posteriores – ninguém precisa ter assistido ao filme para saber que Pi navegou num bote em companhia de um tigre selvagem; basta ter visto um pôster do filme para saber disso, então não é spoiler. Explicar como foi sua vida antes desta aventura, que ele cresceu num zoológico, e que seu pai ter lhe ensinado desde cedo como lidar com segurança e manter distância de animais selvagens foi primordial para sua sobrevivência no bote.
Pi Patel faz um relato muito detalhado dos 227 dias em que esteve à deriva no Oceano Pacífico. Um relato que chega a ser quase chocante em alguns momentos, meio nauseante se você permitir que sua imaginação crie uma imagem exata da cena e não tiver estômago para suportá-la (o que, felizmente, não é o meu caso. Minha imaginação criou as imagens, mas meu estômago é meio sádico), e também meio penoso.
A princípio, eram quatro os animais a bordo: uma hiena-malhada, animalzinho repugnante, que em três dias dizimou a zebra ferida e a fêmea de orangotango, nos tempos menos tensos em que Pi ainda não estava plenamente consciente da presença do tigre-de-bengala deitado debaixo da lona – quem diria, com enjoo de mar...
Depois que ficaram apenas Pi e Richard Parker – o tigre –, as histórias passaram a ser sobre a incessante luta pela sobrevivência. Pi tinha que garantir todo dia a sua alimentação e, principalmente, a de Richard Parker – pois a última coisa que ele poderia querer naquela situação era ter um tigre-de-bengala adulto e faminto no bote. Depois de algum tempo, e de estar praticamente exilado numa balsa improvisada a partir de remos flutuantes e coletes salva-vidas, Pi percebeu a importância de domar o tigre, para que sua presença no bote não se tornasse um transtorno, o que foi primordial para sua sobrevivência, sobretudo depois que a balsa foi destruída numa tempestade.
O livro tem exatamente 100 capítulos – nem um a mais, nem um a menos – e traz todos os detalhes assombrosos dessa aventura do náufrago adolescente e de sua relação tensa, porém, afetuosa com o “bichinho de estimação”, incluindo passagens que tornam muito provável a hipótese de que ele tenha enlouquecido em algum momento durante sua provação, e alucinado algumas coisas.
Pode-se dizer que As Aventuras de Pi é uma coletânea de diversas histórias da vida de um garoto indiano, e cada uma delas poderia dar origem a um livro diferente: sobre um menino que cresceu num zoológico – relato extenso que, repito, poderia ter sido maçante, mas que captura a atenção justamente porque nós nunca paramos para pensar em como realmente funciona um zoológico; sobre um menino que amava tanto a Deus que precisava segui-lo em todas as religiões – exceto o judaísmo, que por alguma razão desconhecida não foi apresentado a Pi; sobre um garoto adolescente que ficou perdido no Oceano Pacífico por mais de sete meses em companhia de um tigre-de-bengala adulto, e sobreviveu; e um capítulo particularmente extenso, o de número 92, que sem dúvida daria uma aventura à parte, onde Pi acidentalmente descobre uma ilha inteiramente composta de vegetação – sem nenhum grão de terra – no Oceano Pacífico, habitada por uma população de centenas de milhares de suricatos – uma ilha que faria os personagens de Lost se sentirem no paraíso com sua própria tragédia na série! E temos ainda, aqui e ali, um capítulo lançando luz sobre o status atual da vida deste garoto extraordinário: como ele superou a tragédia, sem jamais perder suas raízes.
Mas o autor preferiu reunir todas essas histórias juntas, e contar a maravilhosa e peculiar vida de Piscine Molitor Patel. Ou se preferirem:
= 3,14 Patel
Em resumo, As Aventuras de Pi é uma história – além de extraordinária e emocionante –, que nos ensina a valorizar as coisas simples da vida, como um copo de água potável, por exemplo. E também nos faz pensar que talvez a coisa mais significativa que podemos fazer na vida é simplesmente viver!
P.S.: Alguém provavelmente vai notar um déjà vu das conversas fascinantes do náufrago de Tom Hanks com a bola de basquete Wilson, numa curta passagem que relata um diálogo entre Pi e “Richard Parker”, o tigre-de-bengala com sotaque francês!
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