Yago 26/11/2013
Uma boa surpresa na literatura brasileira.
O Filho eterno, de Cristovão Tezza, é um livro ambíguo e tocante. Tocante porque é impossível não se deixar afetar pela história de um pai que descobre que seu filho sofre de síndrome de Down. Ambíguo pois, profundamente humano, o personagem principal da obra de Tezza não se sente nem um pouco feliz com a descoberta, chegando ao extremo de desejar a morte do recém-nascido, mas nem por isso sendo um vilão odioso. Ao contrário de alguns críticos que identificam nessa recusa um sentimento de crueldade, Tezza nos guia numa profunda dissecção psicológica da vida do pai de Felipe (aliás, o único personagem nomeado na história), sem cair no caminho fácil da redenção. Sem vítimas nem vilões, a história é sobre um pai que esperava no nascimento do filho a oportunidade de se engrandecer, mas, ao invés disso, se vê diante de uma corrente para o resto da vida.
O pai de Felipe é um jovem sem perspectivas além do desejo de ser um escritor. Artista sem obra, intelectual sem formação acadêmica, passa a vida sustentado pela esposa à espera de ser publicado. A sua produção irregular é rejeitada constantemente, enquanto, movido pelo narcisismo intelectual, mais ele se eleva a si mesmo. Ele não pertence o mundo medíocre: ele lê Nietzsche, Camus, Sartre...
O primeiro sinal de estabilidade em sua vida é a sua faculdade de Letras, que ele decide levar a cabo. Já casado, é surpreendido pela gravidez de sua esposa. Agora, não será mais alguém que vaga pelo mundo, ele será pai, dentro de um papel definido no jogo das identidades sociais. Idealiza ensinar ao filho sua erudição, formá-lo um ser inteligente; se vê diante de uma massa de argila bruta com a empolgação de um artesão que ama o que faz. E eis que os médicos, de súbito, tiram toda a sua esperança: seu filho é mongoloide, conforme o jargão dos anos 80. Nunca será inteligente, não poderá articular uma frase mais complexa além da estrutura sujeito-predicado, será sempre um peso na vida do pai, que não poderá sequer participar do jogo egoico de exibir o filho como se fosse um troféu. O único consolo dessa desgraça, pensa o pai, é que a condição trissômica desse ser que não lhe parece humano – na sua mente de escritor, a humanidade está ligada diretamente à capacidade intelectual – não lhe permitirá viver muito; os “mongoloides” geralmente morrem cedo de alguma doença do coração.
O que move o pai de Felipe não é a crueldade, mas a frustração. Não com o filho, mas com a sua própria vida. Seus planos eram de guiar uma criança ao caminho da vida, sendo que ele mesmo tinha uma vida de adolescente cujas preocupações não iam além de seus interesses intelectuais. A relação de pai e filho se desenvolve de tal forma que quem tem que se guiar pela vida adulta, amadurecer, procurar um emprego, enfim, ser parte do “sistema” é o próprio pai. O desejo por uma cria dentro de suas expectativas é saciado em determinada parte do livro, mas curiosamente como um fato menor. Felipe é a grande âncora de seu pai, ainda que este venha a sintir vergonha e uma pontada de lamentação pelo resto da vida. Ao mesmo tempo, corrente torna-se um laço que não ele não deseja mais romper.
Uma leve inspiração autobiográfica é constante no livro todo. Uma breve busca na internet pode revelar que a formação intelectual de Tezza, suas viagens e experiências têm muita coisa em comum com o personagem de seu livro. Partindo de si mesmo, Cristovam Tezza almeja chegar ao outro, numa história que trata a relação de pai e filho, do amadurecimento, de ideais da juventude e da transição para vida adulta tal qual ela realmente é, sem interrupções bruscas, um grande “quando viu que ia, já foi”. Um dos grandes méritos da escrita do autor é justamente traçar um período de 25 anos de forma fluida, atendo-se ao necessário para a história, mas sem se deixar ficar à superfície. Isso, aliado à escrita poderosa, reflexiva, sem excessos de estilo, com a erudição bem dosada de um escritor que não sente a necessidade constante de mostrar ao mundo suas próprias referências (mas sem deixar de citá-las quando necessárias ao texto), fazem de O filho eterno uma ótima surpresa na nossa literatura contemporânea.