Julia G 13/06/2013Na Companhia das Estrelas - Peter HellerResenha publicada originalmente no blog http://conjuntodaobra.blogspot.com
"No início havia o Medo. Não tanto pela gripe até aquele momento, naquela época eu caminhava, falava. Não falava tanto, mas eram os sons do corpo - e da mente, você que o diga. Duas semanas inteiras de febre, três dias entre 40ºC a 40,6ºC, sei que cozinhou meus miolos. [...]
Não quero ficar confuso: estamos há nove anos assim. A gripe matou quase todos, depois a doença sanguínea matou mais. Os que sobraram são na maioria Nada Legais. É por isso que vivemos aqui na planície, por isso faço a patrulha todos os dias." (p. 16)
Quase todos se foram. A citação acima resume muito: primeiro a gripe, depois a doença do sangue. 99% da população, mais alguma coisa. E os que restaram não são muito bons - não se sabe se já eram assim, ou se os horrores do "novo" mundo os transformaram. Agora, quem não matava, morria. Sobraram poucas espécies de animais, a temperatura da Terra sofrera alterações e a vida se tornou difícil e solitária.
Hig vivia no hangar de um aeroporto, e não conseguira ainda se adaptar bem às novas regras. Jasper, seu cachorro, talvez fosse a única razão que ainda o mantivesse vivo. Mas havia também a Fera, seu pequeno avião, e Bangley, um "vizinho" com quem mantinha uma relação de respeito, mas não de amizade, e que sabia ser o oposto de Hig, deixando de lado a sensibilidade e a esperança e sabendo "matar primeiro, perguntar depois". O que se poderia esperar em uma realidade como essa, sem esperança? Hig acreditava estar sonhando.
"Não se pode metabolizar a perda.
Ela está nas células do rosto, no peito, atrás dos olhos, nas entranhas.
Músculos, tendão, ossos. É você inteiro." (p. 151)
Na Companhia das Estrelas, de Peter Heller, é narrado em primeira pessoa por Hig, e estruturado de maneira inesperada: a impressão é mesmo de se ter a história contada pelos miolos cozidos de Hig. Pensamentos desconexos e incompletos, sem ordem preestabelecida, conversas sem marcação que poderiam estar acontecendo apenas na mente dele e muitas descrições de lugares e paisagens. Hig não tem muito do que falar sobre o presente, a não ser seus poucos contatos com Bangley e dos lugares que avista voando com a Fera, e grande parte do que conta são lembranças - de como era o mundo, como era seu casamento, como era estar esperando um filho que nunca nasceu. O livro tem uma estrutura confusa no começo, mas quando se compreende a esquematização, a narrativa se torna até mais interessante pelo modo como é feita. É diferente, solitário e humano.
As lembranças de sua mulher, Melissa, assaltam Hig a todo tempo. É bonito ver o amor que ele mantém por aquela com quem dividiu planos, mas é triste, por sabermos que ele não seguiu em frente principalmente porque não tinha como fazer isso.
"Isso tem cheiro de quê? Alegrias.
E o cheiro é sempre o cheiro em si, e a lembrança também, não sei por quê." (p. 132)
Tanta solidão é bem transmitida durante o texto, mas isso acaba ficando cansativo. Algumas poucas cenas de ação e uma ou outra surpresa dão um toque mais dinâmico à história e agradam, mas em geral trata-se dos pensamentos mais comuns do dia a dia de um homem que vive quase sozinho, o que ele vê e o que sente. A vantagem é que tantos pensamentos trazem grandes reflexões aos leitores.
Em geral, eu gostei muito da história. Acho que esperava algo diferente, mais teorias, mais explicações, mais ações e soluções. Algumas coisas ficaram vagas, outras incompletas, mas isso não me deixou frustrada. O livro se difere bastante dos pós-apocalípticos que tenho lido, e isso não foi exatamente ruim. Não é uma leitura surpreendente, mas fala de esperança, de outras chances e também de amor. Traz uma mensagem bonita, pois se Hig consegue mudar um pouco à sua volta, talvez também possamos melhorar o que temos hoje.