Fabby 30/09/2021
Nada infantil
As Luzes de Setembro de Carlos Ruiz Zafón
(por Fabíola Labbé)
este texto contém spoilers!!!!!!!!
Hoje é dia 31 de outubro de 2020 (Halloween) e ontem tivemos um debate sobre o livro Luzes de Setembro, do Zafón. Apenas 7 amigos batendo um papo após a conclusão da leitura, de forma descontraída como se estivéssemos na sala de casa tomando um café.
Quando iniciei essa leitura, fui atraída pela proposta ?infanto-juvenil? do autor, já que sou mãe de uma pequena leitora de 11 anos e sempre procuro conhecer obras para que ela tenha acesso a coisas adequadas à idade.
Estamos falando de uma mãe que tem medo da própria sombra e que costuma ?deixar passar? direto por mim livros de terror sobrenatural e autores como King e Hill não entram em minha TBR (embora já tenha tido acesso e lido alguns de King, hoje prefiro não me envolver).
Pois bem, comecei a leitura e já de cara percebi uma pegada misteriosa e um personagem de caráter questionável. Gostei disso... e me vi abduzida para um universo totalmente sobrenatural e infernal por assim dizer. Temos Daniel Hoffmann, a personificação do Demônio, que usa o coração inocente das crianças (e nesse ponto o autor me surpreendeu pois sempre vemos pactos com adultos mas tirando IT ? que eu não li ? que lida com crianças e foi escrito anteriormente a esse, nunca chegou em minhas mãos literatura onde o anjo caído os faça com as crianças. Mas ? e nesse ponto vejam como é importante o papel dos debates literários ? a Julia Porto, minha amiga, fez uma observação de extrema importância e coerência: o pacto com crianças é algo muito mais profundo pois compromete seus corações que naquele momento são inocentes e não passíveis de corrupção como a alma dos adultos. Um adulto pode tentar quebrar o pacto e corromper a relação mas uma criança não ? em especial com o envolvimento de brinquedos ?, ela se compromete e honra isso.
Nesse momento abro um parênteses para dizer que uma das partes que mais me apavorou foi o fato de que os adultos não tem mais acesso às lembranças de Daniel Hoffmann (embora Lazarus receba cartas esporádicas dele mas até aí, trata-se de um compromisso vitalício entre os dois) e que não consigam ver a magia que o envolve.
Lazarus Jann/Jean Neville é o personagem principal do livro (talvez eu discorde um pouco disso e afirme que Cravenmoore tem um papel tão importante quanto na trama) e desde criança ele tem o sonho de conhecer Daniel Hoffmann, assim como todos os pequenos moradores do bairro dele, todos pobres meninos esfarrapados e mendigos com uma vida emocional carente de tudo que seja primordial na vida infantil. Com uma mãe problemática (no debate chegamos a um consenso de que muito provavelmente já sob a influência de Daniel) que não aceita que o filho tenha brinquedos pois afirma serem obra do Diabo (!!!!)
?Minha mãe me arrastou para o porão do prédio e lá, falando baixinho e sem parar de olhar para todos os lados, como se temesse que alguém estivesse espreitando nas sombras, contou que alguém tinha falado com ela em sonhos. Seu confidente tinha feito a seguinte revelação: os brinquedos, todos os brinquedos, eram uma invenção de Lúcifer em pessoa. Como eles, o diabo esperava condenar as almas de todas as crianças do mundo. Naquela mesma noite, Gabriel e todos os meus brinquedos foram parar na fornalha da caldeira.?
Após perder seu anjo Gabriel e todos seus brinquedos (algo que imagino já causado por obra de Daniel através de influência em sua mãe), Jean se vê, aos 7 anos, trancado em um porão por um longo tempo (uma semana, se não me engano) e é nessa situação que o Mal se revela como um milagre, prometendo uma vida de alegrias e luxos, com a simples promessa de nunca entregar seu coração. Para mim, essa é a face mais tenebrosa que já vi do mal, fazer uma criança se comprometer a nunca amar ninguém durante toda sua vida? Seria uma vida de condenação eterna!!!! E Daniel garante naquele momento que terá aquela pessoa em forma de sofrimento e dor pois em algum momento da vida amamos alguém, sempre.
Não vou entrar na questão de citar trechos e resumo da história contida no livro (com exceção dos que já citei acima) pois minha abordagem nesse texto é muito mais como forma de desabafo e para que eu não esqueça este que foi um dos livros mais bem escritos que já li. A narrativa de Zafón é mágica, envolvente e alguns momentos até poética mas ao mesmo tempo assustadora. Ele consegue criar uma atmosfera sobrenatural em Cravenmoore (o momento em que Ismael e Irene entram na mansão atrás de Simone é algo assustador, arrebatador e envolvente, me deixou com medo da minha sombra ? ah vá, porque será?) fazendo com que a casa seja um personagem tão importante na trama quanto Daniel, Lazarus ou Simone. O fato de que os adultos não vêem tudo aquilo é muito sinistro.
Percebi referências a alguns autores clássicos como Mary Shelley, Robert Louis Stevenson e Bram Stocker mas vi muito de King, especialmente no dom de transformar objetos inanimados em personagens marcantes e essenciais na trama criada.
Termino o livro com a sensação de que posso ler qualquer livro do King ou do Hill a partir de hoje... ah, e a certeza de que minha filha não lerá Zafón por enquanto, deixa a magia da infância morar no coração e na alma dos meus pequenos até que a idade os proteja de Daniel Hoffmann.