Carlos Nunes 17/01/2023
Cuidado para seu nariz não crescer
PINÓQUIO provavelmente é a história infantil mais lida do mundo e, como tantos outros contos infantis, entrou no imaginário popular. Mesmo quem nunca tenha lido a história, ao menos já ouviu falar que o nariz de quem mente cresce e que se você se comportar bem e ouvir sua consciência, vira um menino de verdade, ou seja, se torna mais humano. A maioria conhece Pinóquio por conta do desenho da Disney mas, como também acontece com várias outras histórias infantis adaptadas pela Disney, a original tem muito pouco a ver com a adaptação, principalmente porque a Disney tentava amenizar o teor pesado dessas histórias. E essa aqui não fica atrás, a trama tem momentos bem escabrosos: enforcamento, mutilações, violência, trapaças, fome, pobreza, injustiça social, exploração do trabalho, e por aí vai…
Pinóquio surgiu de um toco de pau falante que foi transformado em boneco pelo artesão Gepeto. E já no primeiro momento o Pinóquio já mostra que é um criador de problemas - assim que Gepeto tenta ensiná-lo a andar corretamente, o boneco sai correndo de casa e foge. Quando ele volta, a casa está aparentemente vazia, porque o Gepeto saiu atrás dele, mas o Pinóquio encontra um Grilo, que lhe diz o quanto seu comportamento foi ruim. E aí o que é que a doce criatura faz? Pega um martelo e dá uma martelada no grilo… Depois disso acaba pegando no sono em frente à lareira e perde os pés. Quando o Gepeto volta, reconstrói os pés do boneco e o convence a ir à escola, para que possa se instruir e ter uma vida melhor que a sua. Mas, na manhã seguinte, Pinóquio se desvia do caminho e vai parar em um teatro de marionetes itinerante. E aí começarão suas aventuras, tentando voltar para casa e seus desencontros com o pai, que irá correr mundo à procura do boneco. E nessa árdua jornada, Pinóquio irá se deparar com personagens e situações as mais diversas, passar por grandes perigos - inclusive com risco de vida em vários deles, chegando inclusive a ser enforcado em uma árvore ou quase sendo jogado na frigideira confundido com um peixe exótico. Ele irá se defrontar com dois pilantras - uma raposa e um gato - que aparecerão em vários momentos, sempre tentando se aproveitar da ingenuidade do Pinóquio para tirar vantagem dele. Ele também fará amizade com um garoto nada confiável, chamado Espoleta (ou Pavio, dependendo da tradução), que o levará a um local que seria o paraíso para qualquer criança, onde só existe diversão, comida à vontade e absolutamente nenhuma supervisão de adultos, em que as crianças podem fazer absolutamente tudo o que quiserem, sem restrições. Mas é claro que esse lugar acabará se revelando uma grande armadilha para as crianças. E no decorrer desse processo, Pinóquio se torna cada vez mais maduro, como uma criança de verdade, e vai aos poucos desistindo de seus velhos hábitos. E no final do livro, depois de aprender várias lições e finalmente provar que tem valores morais, o Pinóquio finalmente consegue seu intento de se tornar um menino de verdade, mas também isso acontece de uma forma bem diferente do que imaginamos - aliás, a cena final esse livro dá margem a muitas interpretações.
E esse é exatamente o objetivo da história: mostrar o crescimento e o desenvolvimento de um boneco-criança, suas habilidades, seus medos, suas teimosias, a insistência na desobediência e nos maus atos, a negligência com seus deveres, o desprezo pelos estudos - cada uma dessas ações levando a um resultado que só não é catastrófico por conta da interferência da famosa Fada Azul - que aqui, curiosamente, não é exatamente uma fada como imaginamos, mas uma menina de cabelos azuis com alguns poderes mágicos, mas que também brinca, se diverte e prega peças, mas que vai crescendo e em vários momentos aparece no caminho do Pinóquio, algumas vezes ajudando, outras apenas mostrando que o que ele acha que está fazendo escondido na verdade não está, e em outras situações ainda pegando bem pesado com ele, deixando-o passar a noite ao relento, fazendo o boneco acreditar que ela está morta por culpa dele ou dizendo que ele irá morrer porque está doente e não quer tomar o remédio, inclusive mandando trazer o caixão para enterrá-lo, ou seja, de doce, essa história não tem nada!
E é nesse sentido que PINÓQUIO é magistral, porque traz esses diversos aspectos da natureza humana dentro de uma história de aventura, de uma forma bem adequada ao entendimento de uma criança que, no final das contas, é o que o boneco é: uma criança travessa, ainda sem limites, que causa problemas, mas que também tem bons sentimentos e a capacidade de fazer o bem, que está sendo moldada para a vida adulta e aprendendo com seus erros. A cada aventura, o autor introduz na mente das crianças valores e ideias como, por exemplo, a de que os pais as amam incondicionalmente e são capazes de sacrificar tudo por elas, de que suas explosões de birra e frustração têm consequências sérias e podem até mesmo causar danos físicos a alguém, como acontece no episódio com o Grilo; que a ganância e a esperança de enriquecer sem esforço através de esquemas que parecem bons demais para ser verdade nunca dão bons resultados - e, principalmente, a necessidade e importância do estudo se a criança quiser ser alguém. Então aos poucos essa relação causa-efeito entre as desobediências e suas consequências negativas vão se enraizando na mente da criança.
É um livro bem dinâmico, os capítulos são curtos, e cada um deles é fechado, então dá até para ler separadamente, como se fossem contos. Mas, como todo bom folhetim, o final sempre tem aquele gancho que deixa a gente ansioso para saber a continuação. E como se trata de uma fantasia, aqui aparecem animais falantes, transformações, episódios mágicos, esse tipo de coisa, tudo colocado de forma bem natural, mas é também uma obra que mostra muito da Itália da época, um país atrasado, com uma população extremamente pobre, desesperançada e muito arraigada em suas tradições. Uma outra questão é que os personagens não são planos, todos têm defeitos e virtudes, e até os vilões às vezes são capazes de bons sentimentos. Em resumo, uma obra que me surpreendeu bastante por sua riqueza e que eu recomendo fortemente.