Euflauzino 04/04/2014Autoimolação para purgar os pecadosChego ao final desta saga sem saber ao certo o que estou sentindo. Num primeiro momento, a palavra deveria ser melancolia, por falta de uma melhor que representasse meu estado de espírito. Mas, com o passar do tempo, com as implicações deste final se acomodando lentamente, achei que assim deveria ser, é um final correto, plausível.
Logo pensei no final da novela Roque Santeiro (sim, gosto de novela, hoje menos que ontem), aquele em que torcemos pelo enlace de Roque e Porcina, e ela acaba optando pela convivência e principalmente pela segurança de Sinhozinho Malta. Ficamos indignados, mas depois de certo tempo pensamos: “ué, é assim que tem que ser mesmo”.
Não quero entrar em detalhes, mas vou resumir rapidamente os dois primeiros livros. No primeiro, após um treinamento tremendamente desumano ministrado pelos Redentores, Cale emerge como a “mão esquerda de Deus”, e como bem lembrou minha amiga Angel: “a mão que tem a finalidade de destruir”. Já no segundo livro, Cale torna-se amargo e é aí que outra amiga querida, Simone Marques, levanta a dúvida: “me parece um livro escrito por outra pessoa”. Fiquei matutando a respeito horas seguidas, já que há partes incompreensíveis no livro, que não conseguimos atinar para o objetivo do autor. As batalhas tomam conta deste e embarcamos em sangue, ressentimento e um terceiro elemento histórico, estranhamente inserido.
No terceiro volume da saga, O bater de suas asas (Suma de Letras, 389 páginas), Paul Hoffman nos apresenta um Cale temido e reverenciado, que busca sua força no ódio, mas é engolido por ele, envenenado. Basta comparar seu pensamento:
“Regra de Ouro: trate os outros como você gostaria de ser tratado. Regra de Cale: trate os outros como você espera ser tratado por eles.”
Sentiram a diferença? Nem é preciso ser psicólogo para saber que todo sofrimento um dia precisa de uma válvula de escape e se ela inexiste a implosão é inevitável. E esta situação para quem é considerado a ira de Deus na Terra pode ser desastrosa. O tal “elemento histórico” está de volta e me parece querer explicar os estilos tão díspares entre um livro e outro – mais confunde que explica. É neste volume que Cale enfrenta as consequências de seus atos de forma mais contundente em sua vida:
“A vida é como um lago no qual uma criança desocupada joga uma pedra, e a partir desse ato, as ondas vão se espalhando. Errado. A vida é um rio, e não um rio caudaloso, só um regato mixuruca com os rotineiros redemoinhos, meandros e vórtices sem importância. Mas o vórtice e a onda descobrem uma raiz, depois outra, solapam a margem, e a árvore ao lado do rio cai atravessada sobre ele e desvia a água, e os aldeões vêm ver o que aconteceu com o suprimento de água e encontram o carvão revelado pela árvore caída, e aí vêm os mineiros e prostitutas para servir aos mineiros e os homens para gerenciar as prostitutas e uma cidadela de barracas e barro se torna um lugar de madeira e barro, depois de tijolos e barro, depois seixos pavimentam as ruas, aí chega a lei para andar sobre os seixos que pavimentam as ruas, aí o carvão acaba, mas a cidade sobrevive ou definha. E tudo por causa de um regato mixuruca e de seus redemoinhos e vórtices mixurucas. E é assim a vida de homens guiados pela mão cheia de dedos do invisível.”
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