Annah12 09/05/2024
Franz Kafka
A inquietação moderna de Kafka salta aos olhos, uma insatisfação com a sociedade do jeito que ela é, com seus costumes e amarras, a negação de uma vida comum e confortável em troca de um universo muito mais humano.
E Kafka escolhe expor essa intranquilidade perante o mundo em forma de crítica profunda, carregando nas tintas daquilo que normalmente já se mostra cruel: as relações de individualidade entre nós, a pressão para nos tornarmos seres encaixados em uma máquina, engrenagens obedientes e sem controle sobre o próprio destino, peças do jogo do ?manda quem pode, obedece quem tem juízo?. E, dentre as obras do autor, seu grande sucesso em matéria de inquietação e perturbação é, sem dúvida, é 'A Metamorfose'.
?Quando Gregor Samsa, certa manhã, acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso?.
Essa única sentença leva o leitor a imaginar todas as implicações de se acordar diferente, depois de consideráveis ?sonhos intranquilos?. E com algumas impossibilidades nas mãos: levar uma vida como a de antes, ter as mesmas oportunidades, o mesmo cotidiano.
Toda mudança é perturbadora, sempre causa espécie, mas a metamorfose de Gregor Samsa aniquila qualquer expectativa de uma vida normal.
Gregor é a mesma pessoa, como se aprisionado naquele ser temido, semelhante ao príncipe transformado em fera nos contos de fadas, mas sem o poder e a ferocidade de ser nobre. O que lhe resta é aceitar as sobras da família, os restos de comida, de atenção, de afeto, de respeito.
Gregor é reduzido à condição de bicho pelos demais, relegado aos cantos da casa, escondido das vistas das pessoas, retirado do convívio e, pela falta de voz e de significância, aos poucos também se animaliza.
Mas a essência do ser humano ainda permanece nele, e por meio de suas emoções, ao final do texto, o personagem revela ao leitor que o homem ainda está ali.
Por fim, parece-me importante salientar uma angústia demasiado humana que irrompe da obra de Kafka: o medo da liberdade. É bem verdade que, conforme a leitura, o medo assume uma dimensão colossal na obra. Mas eis que uma fórmula agita-se numa manhã. Depois de sonhos intranquilos. De noites infindáveis. Ela faz nascer Gregor Samsa. Sob o risco. O medo. A dor. E as perdas que envolviam esse um só corpo, insurge a potência de uma metamorfose.
Ler ou reler um clássico implica não somente em conhecer o contexto desse autor e de sua obra. Mas também deixarmo-nos tocar pela força daquilo que depois de cem anos ainda hoje nos interroga. Desalojando-nos de nossos assentos.
Os estados de sufocação que experimentou Gregor no seu outro corpo, escondendo-se para não assustar a espécie humana, mesmo que frágil e inofensivo se sentisse ?ele mesmo?, são hoje estados cada vez mais cotidianos em nossas vidas. Como se já não respirássemos todos o mesmo ar. Sufocamos quando tudo o que parece nos incluir, nos ?globalizar?, nos unir, acaba por nos apartar, separar, expulsar, impedir. Sufocamos quando não cantamos mais juntos. Quando não dançamos mais juntos. Quando não falamos mais juntos. Quando odiamos uns aos outros e não odiamos juntos o que nos aflige. Quando continuamos sem poder dizer verdadeiramente o que nos sufoca, sufocamos.
A espécie humana se ocupou de enterrar essa verdade.Trazendo para nós algo dessa responsabilidade, implícita em toda restituição para com os corpos. E em toda capacidade conjunta de verdade. Capacidade de verdade que combate a política do extermínio e o seu posterior apagamento.
"Gregor, inseto, esquecido ou esmagado. Com ele está um tanto das patas de todos nós."