Érica 08/02/2014
Sobre o que faz o "ser"
Se se discute religião ou filosofia lembrando que estes são assuntos altamente passíveis de discussões sadias e infinitamente enriquecedoras (não o contrário como afirmam alguns) - em algum momento da vida nos deparamos com as perguntinhas cruciais que questionam sobre o objetivo da vida e da existência do homem, a existência ou não de Deus/deuses e muito mais.
Dentre os questionamentos mais importantes sempre estará aquele com relação a quais elementos constituem o homem/mulher o indivíduo pertencente à espécie humana. O que faz com que sejamos quem somos tanto no campo individual, quanto no coletivo.
Grandes pensadores se debruçaram sobre o tema e continuam fazendo-o.
Umberto Eco, o famoso ficcionista italiano também se dedica ao tema em seu livro A misteriosa chama da Rainha Loana (2004).
Ao longo desta obra toma-se um banho quase literal de cultura italiana das décadas próximas aos anos 40 além de ter-se um panorama da cultura mundial. Ali também se vê a preferência do autor pelo estudo da Semiótica, já que a relação da personagem principal, Yambo, com sua própria estória é rompida em uma espécie de acidente que o deixa desmemoriado mas, sua amnésia resume-se apenas a si mesmo: detalhes como aparência, nome, casamento, filhos, enfim, vida são simplesmente apagados de seu cérebro, enquanto que ele pode citar tudo que não esteja de alguma forma conectado às suas emoções sem dificuldade. Seu ser-racional foi completamente poupado, ao passo que seu ser-emocional foi simplesmente deletado.
Assim, Yambo que nem mesmo sabe o motivo de ter tal apelido um senhor com filhos e netos, de cultura vastíssima (é um vendedor e colecionador de livros raros) empreende uma viagem por sua própria vida vasculhando pedaços de seu passado, livros, revistinhas, músicas, cadernos de escola, comidas em uma verdadeira viagem sensorial tentando reconstruir, em ordem cronológica seu eu perdido, suas lembranças.
E é exatamente aqui que Eco discute o que nos constitui usando uma personagem que alguns enxergam como uma manifestação do próprio ficcionista Yambo parece saber sobre todos os assuntos, é um erudito, como o autor cita de cor trechos de livros famosos assim como os pensamentos dos grandes da humanidade. Fala de história, geografia, filosofia, artes com uma desenvoltura inumana lembrando seu demiurgo que, além de grande conhecedor da filosofia, estuda literatura, linguística e, mais especificamente, a Semiologia (o estudo dos signos culturais e suas múltiplas interpretações) sendo Umberto Eco catedrático da Escola Superior de Ciências Humanas da Universidade de Bolonha.
Talvez o mergulho em tanto saber tenha me dado, como disse várias vezes enquanto lia o livro, a verdadeira dimensão da minha ignorância: tive de fazer algo que não fazia há anos ler o Misteriosa chama com um dicionário do lado. Descobri ou redescobri ali várias palavras como porcina, hipocorístico, hebdomadário, opúsculo e isto mencionando apenas as primeiras quatro que sublinhei e parei para pedir esclarecimentos ao pai dos burros. E, vou dizer a verdade minha solidariedade à tradutora Eliana Aguiar que se esmerou em manter o tom erudito, sem fazê-lo pesar sobre os ombros do leitor, tendo completado uma tarefa hercúlea.
Devo acrescentar Yambo, realmente, nos deleita com sua viagem no tempo: as músicas saltam das páginas do livro elas são mencionadas e, não raras vezes, vêm acompanhadas da letra completa com um desenho da época, em páginas cuidadosamente inseridas, réplicas de jornais ou revistas antigas.
É um livro belíssimo tanto pelo enredo instigante quanto pelas tantas ilustrações que datam das épocas de nascimento e crescimento tanto da personagem quanto do escritor.
A viagem através do tempo foi o que, de fato, me impressionou e me fez desejar, nem que fosse um pouquinho, ser italiana e ter a idade de Yambo para ter o completo entendimento não apenas intelectual daquelas páginas.
Imagino que este entendimento emocional seja algo como o que acontece quando, por exemplo, em uma rodinha de amigos, todos, não importa que ali estejam reunidas duas ou três gerações, cantam juntos uma mesma música que não toca mais no rádio, ou comentam detalhes de um programa que já não é mais televisionado aqueles pontos convergentes da cultura popular são parte da nossa identidade de povo, como Eco, tantas vezes, discutiu em seus trabalhos acadêmicos onde ele argumenta que a arte popular não quer minimizar ou destronar a arte erudita é apenas mais uma manifestação do que é ser humano.
Talvez, este livro seja sua maneira de comprovar de forma prática o que ele tantas vezes discutiu: uma música, um livro, uma página de jornal podem causar impressões tão profundas em alguém quanto um Da Vinci, desde que possuam aquele quê que faça parte da identidade cultural de um povo e por extensão, de cada um dos indivíduos daquela nação.
(publicado no jornal cultural "Conhece-te a ti mesmo")