spoiler visualizarPamela.Baena 09/10/2016
Considerações de leitura de "O Ladrão do Tempo", de John Boyne
A frase mais impactante de todo o livro certamente é a frase inicial: "Eu não morro. Apenas fico mais e mais e mais velho." (BOYNE, 2014, p. 7). É uma pena que a passagem inicial não corresponda ao conteúdo do livro. O personagem de fato não morre, mas também não fica velho. Vive através dos anos sem que a aparência física deixe transparecer a idade. Será que "ficar velho" consiste apenas em acumular anos? Considerando que Matthieu Zéla não sofreu com os males do peso da idade - e também não usufruiu seus benefícios -, ele não ficou velho. A narrativa em primeira pessoa, que teria a responsabilidade de acompanhar 256 anos de rememorações, mostrando a visão atual do eu do passado, não consegue transmitir com muita profundidade uma vivência tão ativa. Também o amadurecimento do personagem é mínimo. Viveu 256 em egoísmo. Claro que se espera que uma narrativa autobiográfica ficcional traga experiências muito pessoais, autofocadas. Mas os sentimentos e pensamentos de Matthieu, que se refletem em suas ações e acarretam drasticamente nos desenlaces da história, são a ele verdades absolutas. O prazer em ver o padrasto sendo morto, após sua mãe ter sido morta por ele... A convicção de que apenas ele sabia o que seria melhor a seu irmão e a Dominique... A fixação romântica por Dominique, construindo um amor idealizado não correspondido, insistindo para que viesse a se concretizar independentemente das negativas da garota, e a ausência de sentimentos pela morte do objeto amado, concluindo que ela é que não merecia seu tão profundo e maravilhoso amor, afinal, como poderia rejeitar tamanha devoção?...
Isto leva à representação que o texto faz das mulheres. Dominique, desde o momento em que resolveu ceder um pouco d'água ao irmão de Matthieu, inseriu-se em uma jornada com ambos da qual não pôde sair. A narrativa coloca a mulher como a que deu o primeiro passo em direção dessa relação conturbada e a primeira a fazer investidas, insinuações e a exigir a consumação, sendo Matthieu ainda um jovem garoto. Depois, inverte a personalidade dela, tornando-a reclusa, misteriosa, impaciente, distante e sem a menor vontade de consolidar um relacionamento e voltar a ser a pessoa agradável do primeiro dia. Torna-se ambiciosa, portadora de planos que não ficam claros ao leitor, mas que acaba por também não consolidar. A construção de sua personalidade é confusa, não se reconhecendo algumas atitudes como coerentes, ou, na pior das hipóteses, concluindo-se que a explicação mais plausível é atribuir-lhe falsidade. A auto-explicação para seu comportamento, segundo relatado por Matthieu, tem a ver com seu passado obscuro... que jamais é revelado. Matthieu não conheceu as motivações de sua amada para abandonar a França, e pouco se interessou. Muitas pontas ficaram abertas com relação à personagem.
Suspeitas são também as relações com as outras mulheres da trama, todas as mulheres sempre girando em torno de Matthieu. Sobre sua mãe, pouco foi dito além do que diz respeito a maridos e filhos. Sabe-se dela apenas o que diz respeito às surras a que se submetia em um relacionamento problemático. Personalidade? Sentimentos? Pensamentos transmitidos aos filhos sobre quaisquer âmbitos? Ora, para quê, não é mesmo?...
"As esposas", tanto de Matthieu, quantos dos Thomas (ou Toms, Tommys, Tomas, sobrinhos em geral... todos também genéricos, dando ao autor a desculpa de uma linhagem com uma sina e poupando-o da confusão de nomes diferentes para cada um), são tão irrelevantes ao mesmo tempo que a história se baseia em relacionamentos. Das 19 esposas de Matthieu, das quais se lembra razoavelmente de 14 nomes, pouquíssimas são melhor trabalhadas. Ainda assim, estas que têm um papel maior na narrativa têm "a profundidade emocional de uma colher de chá" (já dizia Hermione Granger...). Quando os problemas delas não são psicológicos em relacionamentos - como o ressentimento por Charles Chaplin de Constance, o ficcionismo de Alexandra (apesar desta não ter sido esposa) e outros "estorvos" com quem se casou, segundo o próprio Matthieu - e as esposas possuem uma carreira profissional, outras dimensões de vida que não dependam do personagem principal, possuem uma moral colocada como duvidosa, a qual é permitida quando se refere ao personagem principal ou aos personagem masculinos.
O personagem tende a culpar várias das mulheres por diversos problemas que enfrentou (curiosamente, nunca teve nenhum problema com a Receita Federal do país que comporta sua fortuna, nem nenhum órgão público notou sua idade absurda). Um argumento favorável à criatura que é Matthieu seria "ele tem 256 anos, não dá pra cobrar posturas mais atuais dele em relação ao mundo, nem mesmo em relação às mulheres!". Ora, este argumento faria sentido, não fosse a tranquilidade do personagem em aceitar a rapidez das mudanças tecnológicas do mundo, a sua rápida adaptabilidade a idiomas, ideias, políticas, mudanças monetárias, mudanças geográficas, mudanças de círculos sociais e, principalmente, aceitar tranquilamente que ele não morre. Ainda assim, faria sentido alegar uma visão retrógrada sobre a participação feminina em sua vida, não fosse também a característica atemporal da narrativa, sem ambientações características aprofundadas de cada período histórico e geográfico (para além de descrições), sem considerar mais a fundo a mentalidade das épocas, sabendo que o personagem não manteve um conjunto de ideias de um determinado período, já que é como se elas quase não existissem nas estruturas das sociedades.
O principal serviço do autor foi - além de estabelecer a ideia principal da história em início, meio e fim, acrescentar tramas secundárias e subdividi-las em partes a serem embaralhadas na montagem do livro, um protótipo da conhecida como "narrativa não-linear" - foi fazer pesquisas sobre fatos e personagens históricos.
Volta e meia há ainda uma passagem exaltando a meritocracia, a confiança de Matthieu de que é possível ascender social e economicamente pelo talento e trabalho duro e que foi isso que aprendeu em seus maus tempos; um pensamento político direitista em alguns momentos, pretensamente neutro em outros, em favor das corporações ou minimização de acontecimentos e revoluções históricas, juízos de valor desses acontecimentos, simplificações tomando-os apenas como momentos de barbárie, descontextualizações, anacronismos vários...
Não é um livro ruim, desde que se atente para os problemas que apresenta. Mas não se deve esperar por uma obra prima da Literatura. Toda leitura deve ser feita criticamente. O resumo presente no site da editora Companhia das Letras é mais instigante que a leitura do livro como um todo. É uma leitura rápida, fluida, boa para ler no transporte público, pois não exige do leitor muita atenção e é fácil seguir o ritmo da história. O efeito de suspense para querer saber o final não é tão acentuado, não há grandes acontecimentos ou reviravoltas chocantes. O vocabulário não é tão pobre, também não é muito sofisticado. Talvez os principais benefícios do livro sejam introduzir um público mais jovem na leitura e despertar-lhes o interesse pelas questões da História e da Filosofia ("e se eu também não morresse...?"). John Boyne não chega a ser um ladrão do tempo do leitor.
A marca do livro são os fins trágicos dos personagens que cercam Matthieu, deixando subentendida a temática que sugere o título do livro. Entretanto, é um elemento pouco explorado, não há nenhuma explicação racional ou sobrenatural para o fenômeno, nem uma tentativa por compreender o porquê. A atmosfera do texto não é tensa, não é de suspense, não possui terror, não há angústia, nem ironia, nem júbilo ou sadismo, sem melancolia nem mistério... Seria o título, "O Ladrão do Tempo" (The Thief Of Time), mais apropriado a um conto de suspense.