Maranganha 27/02/2011
Apologia Estética da Religião
O homem moderno odeia religiões. Tudo o que se refira a qualquer um dos ismos vigentes causa-lhe asco. Budismo, cristianismo, islamismo, xintoísmo etc. Interessante como, para a Cultura Ocidental, os elementos culturais cujos argumentos mais nos ocupamos em derrubar sejam, ao mesmo tempo, os que mais influenciaram a cultura e a história. Gerações de pensadores vêm discordando de livros como a Bíblia, mas milhares de artistas no decorrer da história lhe são devedores em termos de estrutura literária em uso. Claro que parte do modo de contar histórias com que nós temos contato é o que veio do mundo clássico, mas a Bíblia ainda é objeto de fé e recusa, o motor que põe a energia do sistema estético para rodar. Falando bem ou mal, falamos dela.
Talvez o maior problema acerca da Bíblia na modernidade seja o fato de que, muitas vezes, não nos atentamos para o fato de que ela é literatura. É um conjunto de textos escritos em gêneros textuais variados em que boa parte utiliza-se de uma linguagem poética. Como trata-se de um livro que passou muito tempo sendo escrito, passando pelas mãos de vários autores, ela é, com frequência, um livro mal compreendido. Ser utilizada por gerações de fiéis para ratificar a violência não elimina esse fato. Se tomarmos uma parte dela, como os Salmos, veremos que seus objetivos não são matar e destruir, mas louvar e religar. Mas, como os Salmos são poemas em determinado povo, dentro de determinado contexto histórico, então eles levam em sua linguagem elementos que constituem o momento e a cultura judaica de quando foram feitos. Aquela mesma cultura violenta que matou e destruiu, e que também perdoou e sincretizou-se com os povos vizinhos. Um povo que agia, pensava e falava como qualquer outro povo com os quais eles tinham contato. Os Salmos foram feitos para serem cantados diante desse público exigente de judeus, e, portanto, seu formato e seu tema se ajustaram ao modo como eles criavam sua cultura. Podemos inferir então que a Bíblia se preocupava com a resposta do leitor.
Obviamente a literatura bíblica era um retrato da mitologia bíblica. A mitologia como conhecemos hoje, e como conceituamos de forma pejorativa, é uma injustiça, já que a mesma não passa de um conjunto de narrativas de fundo religioso que explicam as coisas. A mitologia é um sistema muito amplo e complexo, pois a Bíblia é complexa. Ela utiliza-se dos mesmos arquétipos que as demais culturas, apenas trocando os heróis e deuses por profetas e anjos, e tirando o foco das crenças politeístas para um sistema monoteísta típico. Os animais mágicos de outras mitologias, como o Touro de Enkidu ou o Ganso dos Ovos de Ouro aparecem sempre como arquétipos sociais, representativos de algum elemento social em questionamento ou ratificação em um sistema de crenças. É como ocorre com o caso da burra de Balaão, que o adverte a não prosseguir. Deus dá a voz a ela, e ela dialoga com seu dono. Exemplos da Serpente do Paraíso e da Besta do Apocalipse seguem no mesmo sentido.
A Bíblia é um livro complexo, mas voltemos aos Salmos. A presença de um único Deus dotado de todos os poderes de todos os deuses e ainda mais um pouco era um conceito novo e estranho para as culturas do levante. O eu-lírico filtra o autor, mas ambos envolvem-se com o contexto, o que difere esses poemas dos modernos. Basta lembrar que outras tradições poéticas euroasiáticas seguiam o mesmo processo de comprometimento sócio-histórico do autor e do eu-lírico, como os mantras (Índia), os gathas (Pérsia), as odes (Grécia) e os carmina (Roma). A voz do poeta era o stablishment social, comprometido não somente com a elaboração da narrativa, mas com a elaboração da própria realidade de crenças nas quais viviam os demais membros daquela sociedade. O Salmo bíblico é um exemplo de total equilíbrio entre o eu-poético e o poeta.
Tomemos o Salmo 139, do rei Davi, como exemplo (na Bíblia católica, é o Salmo 138):
Senhor, vós me perscrutais e me conheceis.
Sabeis tudo de mim, quando me sento ou me levanto.
De longe penetrais meus pensamentos.
Quando ando e quando repouso, vós me vedes,
observais todos os meus passos.
A palavra ainda me não chegou à língua,
e já, Senhor, a conheceis toda.
Vós me cercais por trás e pela frente,
e estendeis sobre mim a vossa mão.
Conhecimento assim maravilhoso me ultrapassa,
ele é tão sublime que não posso atingi-lo.
Para onde irei, longe de vosso Espírito?
Para onde fugir, apartado de vosso olhar?
Se subir até os céus, ali estareis; se descer à região dos mortos,
lá vos encontrareis também.
Se tomar as asas da aurora,
se me fixar nos confins do mar,
é ainda vossa mão que lá me levará,
e vossa destra que me sustentará.
Se eu dissesse: "Pelo menos as trevas me ocultarão,
e a noite, como se fora luz, me há de envolver".
As próprias trevas não são escuras para vós:
a noite vos é transparente como o dia
e a escuridão, clara como a luz.
Fostes vós que plasmastes as entranhas de meu corpo,
vós me tecestes no seio de minha mãe.
Sede bendito por me haverdes feito de modo tão maravilhoso.
Pelas vossas obras tão extraordinárias,
conheceis até o fundo a minha alma.
Nada de minha substância vos é oculto,
quando fui formado ocultamente,
quando fui tecido nas entranhas subterrâneas.
Cada uma de minhas ações vossos olhos viram,
e todas elas foram escritas em vosso livro;
cada dia de minha vida foi prefixado,
desde antes que um só deles existisse.
Ó Deus, como são insondáveis para mim vossos desígnios!
E quão imenso é o número deles!
Como contá-los? São mais numerosos que a areia do mar;
se pudesse chegar ao fim, seria ainda com vossa ajuda.
Oxalá extermineis os ímpios, ó Deus,
e que se apartem de mim os sanguinários!
Eles se revoltam insidiosamente contra vós,
perfidamente se insurgem vossos inimigos.
Pois não hei de odiar, Senhor, aos que vos odeiam?
Aos que se levantam contra vós, não hei de abominá-los?
Eu os odeio com ódio mortal,
eu os tenho em conta de meus próprios inimigos.
Perscrutai-me, Senhor, para conhecer meu coração;
provai-me e conhecei meus pensamentos.
Vede se ando na senda do mal,
e conduzi-me pelo caminho da eternidade.
Não estou aqui para fazer apologia ao Cristianismo, mas para ressaltar o caráter filosófico desse hino ao conhecimento de Deus. O rei Davi, salmista, medita sobre a onisciência de Deus, que conhece os segredos da criação, que é onipresente e que sonda os mistérios mais obscuros da geração e do destino do homem. De uma maneira muito clara, o Salmo 139 ressalta o caminho comum tanto no Budismo Indiano como no Taoísmo Chinês, partindo da ontologia para a prática. No poeta há um compromisso ontológico muito forte com o Ser Absoluto e, depois, com a natureza que ele criou. Por fim, há um compromisso social, como podemos perceber na terceira parte do poema. Desconsiderar o valor poético de um poema como esses é desconsiderar seu valor cultural diante de poemas mais recentes.