TrinityOhara 20/11/2010
O raso e o profundo.
Analisar um romance do romantismo brasileiro é algo que requer um cuidado todo especial. Porque não acredito que seus autores eram assim tão ingênuos, e sim, que queriam escrever uma obra inocente, quase ingênua, um quase dever-ser do mundo. No mundo romântico de José de Alencar e "Iracema", o branco fala a língua do índio que fala a língua do outro índio. Uma língua que é, em si, a razão do próprio livro, como o confessa o autor na carta ao Dr. Jaguaribe que fecha a primeira edição.
Mas até a própria língua é, de certa forma, idealizada. Não que seja falsa, não o é: o autor tomou o cuidado de pesquisá-la e transmiti-la o mais leve e belamente possível. É falsa na medida em que não tem o poder mágico de tornar o mundo mais belo como José de Alencar parece querer que assim o vejamos. Como se o carmim do pau-brasil fosse mais de um vermelho mais vivo que o de outro vermelho não tupiniquim. E é falsa também na medida em que sabemos que nem todos os índios falavam o tupi, que nem todos os índios eram amigos e que o bem e o mal não era tão simples como o homem branco o vê.
Por consequência, tudo o mais em "Iracema" é falso e a mensagem precisa ser bem entendida para não cair na óbvia mesmice puritana. É a mensagem verdadeira por detrás da falsidade que, para mim, faz de Iracema um livro extremamente interessante.
Não há amor no romance, muito menos um amor impossível, menos ainda uma luta por esse amor ou um amor pelo qual lutar. Iracema, a índia, se apaixonou pelo guerreiro branco que, por sua vez, foi por ela seduzido (e enganado). Não foi pelo sexo que Iracema traiu o segredo da Jurema, foi por levar ao bosque sagrado um guerreiro, ainda mais estrangeiro. E foi ao ouvir os sonhos do guerreiro sob o efeito da bebida sagrada que consumou essa traição. Por isso, e pela consciência disso, que Iracema morreu. Em português claro, a índia morre ao ver a besteira que fez e cair em profunda tristeza.
Todos os professores sempre me falaram da idealização do indígena no romantismo. Não sei se eu que sou amarga demais ou se eles não leram o mesmo livro que eu, mas eu vi exatamente o contrário. Ainda que se floreie um pouco a hospitalidade indígena e se romantize seus costumes, o único personagem que permanece íntegro do começo ao fim da história é o branco Martim. Ele que recebe por esposa a índia que se aproveitou da viagem astral para a ele se entregar, ele que recusa guerra na terra que o hospedou, ele que abandona a tribo amiga porque a esposa pediu, ele que sai em guerra e ao voltar recebe o filho e enterra a esposa que morreu porque parou de comer. Iracema, posto que mulher, morena e indígena é praticamente retratada como uma vaca caprichosa, com o perdão da palavra. A tribo dela até quase o final do livro, fica por incompreensiva. Poti é retratado praticamente como uma máquina de guerra, e sua tribo, índios de guerrear na praia...
Em resumo: um belo texto, sobre uma bonita história escrita por um homem branco que, muito provavelmente, entendia um pouco de mulheres, mas praticamente nada de índios. Quanto a mim, prefiro Machado.