Maria13835 16/01/2023
"Ô, doutor, com todo respeito..."
O que você faria se o seu local de trabalho violasse todos os princípios da sua profissão? Esse foi o questionamento que me cruzou durante todo o livro.
Em primeiro lugar, o fato de um médico escrever sobre a rotina em uma penitenciária, por si só, já é um gesto revolucionário. No mínimo, polêmico. E Drauzio Varella foi brilhante em descrever esse paradoxo que chega a ser cômico no decorrer do livro.
Enquanto médico, há o princípio fundamental do respeito e cuidado pela vida, independentemente de quem seja. Sem julgamentos, sem reforçar estigmas sociais. Contudo, a rotina em uma penitenciária é marcada pela negligência, esquecimento e desprezo pelos detentos, tanto por parte do Estado quanto da sociedade. Direitos humanos é um conceito distante e abstrato. Não há a valorização da vida porque não há o entendimento de que o que está por trás daquelas celas são seres humanos. Como um médico pode exercer a sua profissão em um ambiente tão hostil ao que foi ensinado?
Drauzio chega no presídio com a intenção de conter a epidemia de HIV entre os detentos e termina por conceder assistência para todo tipo de ocorrência, desde tuberculose a uma inflamação crônica nos glúteos de uma travesti. Muitas vezes teve de tratar de patologias que não pertenciam à sua área de especialização ? motivo pelo qual teve que estudar mais e saber um pouco de tudo ?, e de contar com o auxílio de detentos como enfermeiros.
A penitenciária é uma célula social à parte, com um estrutura muito bem definida. Há um código de leis e honra rígido, que é inviolável e punível com a morte: não causar desordem em dia de visita para não assustar as mulheres, não olhar para a mulher do companheiro (nunca, jamais!), não romper com a palavra dada, não jurar de morte alguém e não cumprir, não alimentar dívidas, não entregar ninguém pois "malandro de respeito é aquele que ouve muito e fala pouco". Mas o mais interessante: não faltar o respeito com o médico. Não pelo prestígio da profissão em si, mas pelo médico fazer algo pelo bem da coletivo. Um ato impensado que afeta a vida dos detentos como um todo, é uma falta grave.
Ao sabermos o que leva cada um dos citados no livro chegarem à penitenciária, por vezes ficamos revoltados. Há um pouco de tudo. Mas o Drauzio também teve o cuidado de construir as personalidades para além do crime que cometeram. A maioria cresceu no seio da violência e negligência, é negra periférica e teve diversas passagens pela casa de detenção de menores. Um deles viveu na rua sozinho, sem família, desde os seis anos de idade. Julgar alguém apenas pela sentença é ser leviano, simplista e ignorar a complexidade das pessoas terem se tornado o que são.
Mas o mais interessante é a ênfase que o Drazio deu ao fato de que não cabe a ele julgar e sentenciar os detentos. Isso já foi feito no tribunal por pessoas mais competentes que ele. A ele, enquanto médico, cabe cumprir com o que foi ensinado a fazer, cuidar das pessoas com dignidade, mesmo que seja um ato de contínua resistência.