Bela 17/04/2024
"O sangue da Yeonghye era para sair do seu próprio peito?"
Bom, vamos lá.
A Vegetariana é um livro muito interessante, para além dos acontecimentos da narrativa é como se o livro conseguisse passar uma dimensão que vai além das palavras, uma sensação que transcende facilmente o tangível e até o racional. Para mim ele conversa com algo mais profundo. Eu não consigo expressar em palavras a forma como a história mexeu comigo...
Mas também tem outra questão: um livro não é somente a história, mas ele também é parte do contexto do leitor. E o meu contexto de leitura, o momento que eu li esse livro, foi bom, muito bom.
Contextualização parcialmente o meu contexto (não vou contar tudo em detalhes): eu comprei esse livro na Blackfriday de 2022! Ou seja, tinha 2 anos! Eu fiquei com uma pilha tão grande de livros que ele foi ficando... até a minha mãe tinha lido e eu não (minha mãe leu em Abril de 2023). E ele foi ficando, eu já nem tava querendo ler mais... PORÉM uma amiga minha do estágio/monitoria da faculdade, a Malu, me convidou para um grupo de leitura MUITO LEGAL por mulheres e para mulheres, e o livro da vez era A Vegetariana! E eu pensei: é agora o nunca! E foi intensa a saga, mesmo ela tendo me avisado com um mês (ou até um pouco mais) de antecedência eu só fui começar a ler na terça feira (09/04/2024) e o encontro do clube era quarta 19h30 (10/04/2024), e eu terminei tipo 19h o livro. E tinha MUITO tempo que eu não lia um livro TÃO rápido! Foi um processo bom! Valeu muito a pena me dedicar para ler em poucas sentadas.
Enfim, ler nessa velocidade foi só uma das várias coisas que eu acho que fortaleceram a leitura como um todo.
Agora, retomando o livro em si, eu achei ele bom, um sólido 3, e vou explicar o porquê. O foco maior do livro era direto e reto: o silenciamento das mulheres na sociedade. Trabalhando dois arquétipos principais temos: a protagonista e a irmã dela. Uma resolve reagir, resolve "se rebelar", vulgo, tomar atitudes próprias (que, não deveriam, mas incomodam e MUITO). Já a outra segue no caminho da resignação, de se negar e se apagar em virtude do outro, do marido, do filho, da família etc. E eu me vejo muito nas duas. Me calando e incomodando por escolhas ou mesmo limites que deveriam ser meus.
Como falamos no clube de leitura o fato da protagonista ser vegetariana é mais do que o simples fato de ser vegetariana, mas a autora escolheu especificamente isso por ser algo que incomoda as pessoas (E MUITO MESMO na minha experiência). Você nunca vai poder falar que é vegetariana e não ouvir nem um "mas por que????" É algo que não passa batido e que por mais que não diga respeito a ninguém (já que ela não tá obrigando ninguém, nem mesmo o marido, a ser como ela) TODOS querem criticar e opinar na vida dela, como se fosse direito dessas pessoas. E outra coisa, bemmmmm aos poucos esse estranhamento e implicância vem diminuindo, mas em 1997 (data de lançamento da obra) com certeza era pior!
Também gostei de que a protagonista é tão, mas tão, mas tão silenciada que nem o POV dela nos temos, e tudo que é dito sobre ela vem de terceiros. E o auge de uma redução dela. Eu achei que isso foi frustrante por um lado, pois queria ver MUITO na perspectiva dela sem filtros, mas acho que por outro lado escancarou essa noção de que a protagonista foi privada de seu próprio protagonismo, assim como de muitas escolhas de sua vida. E isso traz muita coerência para a obra. (Esse silenciando da protagonista me lembrou um filme que tinha visto no domingo, dois dias antes de ler, que não tem haver, mas tem um protagonista meio que silenciado, o filme: dias perfeitos que concorreu ao Oscar esse ano)
E mesmo sabendo que o foco do livro não é sobre ela comer carne ou não, eu tive certeza da realidade inacreditável prsente na obra, das atrocidades que um vegetariano passa (eu já vivi muita coisa que ela viveu com a questão de não comer carne). E para além disso o que uma mulher que resolve decidir suas questões, e como o desrespeito é gritante.
Mesmo o livro não tendo um final feliz, eu achei bom. Ficou aberto, mas o livro era isso, uma história aberta de uma mulher que foi sumindo para deixar de sofrer. Não senti falta de algo mais finalizando.
O único ponto negativo para mim foi a questão do erotismo, eu sei que era para incomodar e funcionou bem. Mas acho que se delonga demais nisso e por mais que possa ser algo necessário para autora me desagradou, por isso que não dou 4 estrelas.
Enfim, gostei de sair da minha "zona de conforto" literária e recomendo o livro SIM!
Esqueci de QUATRO citações grandes no histórico, então vou colocar aqui (pode ser meio spoiler para quem não leu, se vc não leu pula esse final aqui)
"Coma, Yeonghye. Se comer, vai recuperar as forças. Nós, seres humanos, precisamos de energia para viver. Os monges só conseguem ser vegetarianos porque fazem votos de castidade e buscam a iluminação através do sofrimento", argumentou minha cunhada, sempre amável." Pag 39
"Quando mando comer, você come!", disse o pai.
Imaginei que ela diria "Sinto muito, papai. Mas não consigo". Em vez disso, respondeu sem se lamentar ou se desculpar:
"Não como carne." (...) "Coma. Ouça o que eu digo e coma. Estamos fazendo isso por você. O que vai fazer se acabar doente?"
Dizia aquelas palavras em tom amoroso e paternal, e acabei ficando com os olhos marejados. Provavelmente todos sentiram o mesmo.
"Pai, eu não como carne", disse minha esposa ao empurrar a mão trêmula do pai, que segurava os palitinhos no ar. Subitamente, a palma forte de meu sogro rasgou o ar e minha mulher cobriu o rosto." Pag 41
"Meu sogro enfiou à força o pedaço de porco agridoce. Diante da investida, o irmão caçula amenizou a força no braço e minha esposa reagiu, cuspindo o alimento. Um grito animalesco explodiu de sua boca:
"Me deixem em paz!"" Pag 43
""Preparei em casa, antes de vir para Seul. Imagino que você deve estar sem forças, depois de ficar sem comer carne por tantos meses... Comam juntos. É caldo de cabra negra. Trouxe escondido, para que minha outra filha não visse. Fale para Yeonghye que é um bom remédio. Cozinhei com muitas ervas, para encobrir o cheiro de carne. Yeonghye já parecia um fantasma, de tão magra; com a perda de sangue, então..." (...)
Com um copo fumegante em uma das mãos, minha sogra segurou a mão da filha com a outra.
"Minha filha...", disse minha sogra com os olhos cheios de lágrimas. "Experimente isso. Veja como você está..."
Minha esposa obedeceu e pegou o copo.
"É um remédio caseiro. Preparei para fortalecer a saúde de vocês. Você tomou isso antes de se casar, lembra-se?"
Minha esposa aproximou o copo do nariz e balançou a cabeça.
"Não é remédio caseiro."
Com uma expressão serena e triste, os olhos cheios de algo parecido a pena, minha esposa esticou o braço e devolveu o copo para a mãe.
"É remédio, sim. Tampe o nariz e tome tudo num gole só."
"Não vou tomar."
"Tome. É sua mãe que te pede. Desejo a gente atende até de gente morta, não se diz por aí?"
Minha sogra aproximou o copo da boca da filha. "
É mesmo remédio caseiro?"
Estou dizendo que sim." (...)
"Aonde você vai?"
"Banheiro."
"Por que ficou só olhando, Jeong? Você devia saber o que ela pretendia fazer, não é?"" Pag 47, 48 e 49