spoiler visualizarJaguatirica 27/02/2020
"Eu não sabia absolutamente nada sobre aquela mulher — foi o pensamento que de repente me ocorreu", foi uma das conclusões da protagonista "vegetariana" de nossa história
"- Você tem cheiro.
- Cheiro de quê?
- Carne. Seu corpo cheira a carne.
Dei uma sonora gargalhada.
-Você não viu que acabei de sair do banho? De onde você pode sentir esse cheiro em mim?
Sua resposta foi cortante. “De todos os seus poros".
E o nojo por carne aumenta gradativamente durante o livro, enquanto sua família tenta a todo o custo convencê-la a comer, usando vários tipos de argumentos (alguns bem estúpidos):
“Viram que há pouco descobriram a cabeça de um hominídeo de quinhentos mil anos? Carregava vestígios de ter se alimentado de carne. Comer carne faz parte da nossa natureza. O vegetarianismo vai contra nossos instintos. Não é algo natural.”
O fato é: até umas das cenas finais (bem construída ao meu ver) ninguém compreende Yeonghye. Aos olhos de todos ela é apenas uma maluca que precisa voltar ao "normal". Ah, aqui me lembro muito dos estudos sobre a Loucura, por Foucault. A vegetariana louca é a mulher que está totalmente desligada da esfera social. Ela vive no próprio mundo, que construiu desde a infância - repleta de dor e abusos, onde o único lugar que porventura sentiu paz foi na floresta, entre as árvores. Imagine só, ser um vegetal que não precisaria mais sentir a dor de existir… que não precisaria sofrer de insônia e pesadelos constantes e nem violência doméstica. Só precisaria de água e sol.
"Se eu pudesse dormir, se pudesse ficar inconsciente por apenas uma hora.
[...] Já não consigo dormir mais que cinco minutos. Assim que caio no sono, começo a sonhar. Não: nem sequer posso chamar isso de sonho. Não passam de cenas curtas que me assaltam de forma intermitente."
Certa feita seu marido, narrador da primeira parte da história, declara: "De um segundo para outro, aquela mente, à qual eu nunca tivera acesso, o seu interior, me pareceu uma armadilha sem fundo. [...] Mais do que estupefação ou embaraço, odiei minha esposa com todas as minhas forças"
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Tão fácil odiar sem entender, seu banana! Nem ao menos teve o interesse de perguntar sobre o sonho que tanto a atormentava todas as noites. Nunca perguntou se ela estava bem ou precisava de ajuda. Nunca a abraçou. Fácil ficar contra ela também. Vai se justificar lá na esquina. Aaargh. A aurora caprichou em escancarar os comportamentos machistas da Coreia do Sul, que mesmo com toda a modernidade ainda carrega vestígios de muita hierarquia e domínio dos homens. O casamento é uma coisa que "deve acontecer" e nada entre o casal pode dar errado pra que isso não escandalize a família. E se algo der errado a culpa é toda da mulher, óbvio, e até a família da mesma a rejeitará.
"Acabei adormecendo e sonhei que matava alguém. Usei uma faca para abrir-lhe a barriga e arrancar os intestinos sinuosos; arranquei-lhe toda a pele e os músculos, deixando apenas os ossos, mas esqueci completamente quem era a vítima no momento em que acordei."
A coisa foi de mal a pior e ninguém se conformava com uma mulher apática e média em tudo, tendo opinião própria: "Mas o sogro, um ex-combatente na Guerra do Vietnã, esbofeteou a filha e ainda a fez comer carne à força. Foi uma cena tão absurda que era difícil acreditar que tinha mesmo acontecido."
“Ela parece mansa por fora, mas, por dentro, não. Sempre foi meio desligada, mas agora, com todos os remédios, está mais ausente ainda. Nada mudou, acreditem.[...] Dava a impressão de se contentar com observar tudo o que lhe acontecia, como uma espectadora, apenas. Não: quem sabe em seu interior coisas terríveis e inimagináveis estivessem acontecendo, e gerenciar tudo aquilo, mais as questões cotidianas, fosse desgastante demais para ela. Talvez por isso não tivesse energia suficiente para demonstrar interesse ou para reagir às coisas ao seu redor."
O destino de Yeonghye vai lhe empurrando cada dia mais pra dentro da própria "loucura". "Mana… todas as árvores do mundo são minhas irmãs. [.. ] Não sou mais um animal, mana”, diz Yeonghye baixinho, passando os olhos pelo quarto vazio, como se estivesse contando um segredo. “Não preciso mais comer. Consigo viver assim. Só preciso tomar sol.”
"Ninguém me entende… Nem o médico, nem as enfermeiras… São todos iguais. Nem tentam me compreender. Só o que fazem é me dar comprimidos e enfiar agulhas em mim.”
E este é o livro. Uma história um pouco esquisita e muito comovente. Talvez a narrativa não seja das mais lineares (ainda a me acostumar com o estilo oriental de narrar) mas a história em si é tão boa. Pessoalmente me vi representada em muito da figura de Yeonghye e sinto um grande afeto por ela. Esse livro traz tantos simbolismos! Dá pra extrair tanto. Elenquei coisas como: as consequências psicológicas do abandono, como nossa mente é frágil e ao mesmo tempo maravilhosa para criar defesas, etc, etc. O livro me deixou com uma sensação de amargor. Nenhum personagem ama, são todos tão distantes, apáticos e de mente fechada, e por não sentirem nada podem muito bem fazer o mal sem pudor algum. São ocos e não se dão conta disso
Yeonghye ao menos abraçou seu vazio e fez as pazes com ele. E a irmã de Yeonghye foi a única a começar a mudar isso por seu grande senso ético e sua luta contra os impulsos. Vale prestar atenção nessa personagem.
Enfim, "a vegetariana" me surpreendeu, especialmente do meio para o fim, quando a irmã é quem narra.
Achei que a história iria me desagradar mas felizmente foi o contrário. Nunca mais vou tirar essa história da cabeça ou ver flores pintadas em corpos nus da mesma forma.
Agora o SPOILER é pra valer!
"Muito tempo atrás, ela e a irmã se perderam nas montanhas. Yeonghye, então com nove anos, lhe disse: “Vamos ficar aqui e não voltar mais”. Naquela época, ela não entendeu o que aquilo queria dizer. “Como assim? Logo vai escurecer. Precisamos achar um caminho o quanto antes.” Só depois de muito tempo, ela a compreendeu.
Yeonghye era o principal alvo da violência desferida pelo pai. O irmão mais novo, por ser homem, saía batendo em outros meninos do bairro tanto quanto apanhava em casa, e por isso deve ter sofrido menos. E ela recebia mais atenção, pois era quem preparava a sopa para aliviar a ressaca do pai no lugar da mãe, que estava sempre cansada. Mas Yeonghye, de personalidade pouco condescendente, não sabia acompanhar os humores paternos. E sem conseguir oferecer resistência, os maus-tratos devem ter lhe atingido até o fundo dos ossos. Agora ela sabe: a diligência com que ela agia como filha mais velha não era fruto de uma maturidade precoce, e sim de covardia. Era apenas um meio de sobrevivência."
"De repente,(a irmã de Yeonghye) se deu conta de que nunca tinha vivido e ficou surpresa. Era verdade. Não tinha vivido de fato. Desde o tempo remoto da infância, tudo o que ela fizera foi aguentar. [...] nesse dia que percebeu que estava morta havia muito tempo. Que sua vida cansativa não passava de uma encenação…"