spoiler visualizarMauro.AssunAAo 08/02/2021
Ainda bem que o Séc 21 é diferente do livro
Ray Bradbury nos apresenta, em As Crônicas Marcianas, um universo futurista fantástico, imaginativo, em que os seres humanos vivem o êxtase coletivo da viagem e colonização espacial, mas com tons obscuros, pessimistas (talvez consequência dos horrores da segunda guerra no imaginário do autor). Muitas vezes desolador e desesperançoso, o autor parece convencido da inexorável capacidade humana de se autodestruir e aparenta tentar convencer o leitor desse macabro destino (que, se não for convencido por esse, muito provavelmente será pelo próximo livro do autor).
Cansados de destruírem a terra e esgotarem seus recursos naturais, os humanos partem para Marte. Este é o resumo mais objetivo possível para o mote central do livro, que se desenrola em 26 contos, independentes, mas organizados de forma cronológica, de forma a comporem, com eficiente coesão e um ótimo senso de unidade, a obra. Como isto é feito? Alguns contos retomam personagens e eventos de histórias passadas, o planeta vermelho vai se modificando, os humanos vão o transformando, aos poucos, numa cópia da terra, as viagens migratórias da terra vão se intensificando com o passar do tempo, os conflitos com os marcianos vão ficando cada vez mais violentos. Além destes, é interessante observarmos que alguns contos são curtíssimos, de poucas páginas, que parecem preparar o leitor para a pancada que virá a seguir, com uma história que não hesita em mostrar o pior em nossa espécie.
Temas como racismo, visto em “flutuando no espaço” (e na obra completa, por que não? Já que os humanos veem os marcianos, na maioria das vezes, como uma subespécie violenta, como em “A baixa estação”); solidão, abandono da terra Natal, como explicado em “Os Colonizadores”; Perda de identidade, como o desfecho de “O piquenique de um milhão de anos”, onde as classificações “Humanos e Marcianos” se confundem. Assim como se confundem os próprios planetas, que acabam a obra idênticos, desfarelados pelas guerras e o poder da bomba atômica. Esta última, aliás, é o tema do conto mais impactante da obra, pelo menos para mim: “Chuvas leves virão” é o único sem personagens, com a exceção de um pobre cãozinho que aparece apenas para morrer e ser carbonizado pela casa, assim como seus donos foram, pela bomba, em suas novas casas, Marte. Aqui, o autor cria um ambiente carregado de emoções, nostalgia, tristeza, mesmo sem que nenhuma pessoa diga qualquer palavra. A revelação da música favorita da antiga moradora: um bonito poema antiguerra mostra a humanidade e uma esperança em dias melhores daquela família, que acabou sucumbindo à guerra. Já aos habitantes sobreviventes de ambos planetas, restou escolher um novo estilo de vida, menos destrutivo.
Outro conto que se destaca é Usher II, uma história macabra de vingança, arquitetada (literal e figurativamente falando) a partir da construção de uma casa e seus androides serviçais, que se destroem, dando um desfecho grandioso, digno de cinema, para o conto.
Entre os contos mais curtos, que mais parecem poemas e reflexões do autor sobre seu universo fictício, seus personagens e sobre os rumos da humanidade (que vivia, em 1950, um pós guerra cheio de mudanças culturais, sendo a substituição da literatura pela TV como forma de entretenimento, a maior delas). “Os Colonizadores” é o mais significativo destes, pois resume todo o sentimento revolucionário e inquieto de um povo, com seus motivos para sair de casa, de país, ou de planeta, em busca de sonhos, incentivados pelo governo, com um slogan que é uma paródia do “I want You” americano.
Bradbury lança mão de bonitas metáforas e comparações para dar cor aos textos, que quase sempre abordam temas desconfortantes. Seu bom-humor ácido é um ótimo alívio cômico. Seus personagens são sagazes e inteligentes, principalmente os marcianos, com suas máscaras e pele vermelha, telepatia e poderes psíquicos. O choque entre as raças dá pano para manga para muitos conflitos e cenários instigantes, mas o autor não exagera com este recurso, o que me fez torcer e vibrar quando um marciano entra em cena, embananando as memórias dos colonizadores.
Crônicas Marcianas é um ótimo livro para mentes inquietas, que gostam de descrições bonitas e detalhadas de cenários caóticos e melancólicos, que não se furtam em fazer reflexões sobre nossa humanidade e a forma como nos relacionamos com nosso planeta. Vale inclusive uma releitura, para que o leitor possa captar a forma como os contos dialogam entre si.