spoiler visualizarbardo 28/11/2021
É curioso como esse texto cresce na releitura, recordo-me de ter apreciado a primeira vez que li, mas diversas coisas me passaram desapercebidas. Talvez o mais interessante seja que ressalvados a dificuldade de leitura tanto pelo texto arcaico da tradução de Lima Leitão quanto pela erudição de Milton que em alguns trechos pode parecer enfadonha e exibicionista; o texto possuí diversas camadas que numa leitura desatenta podem passar desapercebidas.
Um ponto a se ter atenção é o fato do demônio ser de longe o personagem mais cativante do poema, que sendo aparentemente doutrinal é uma escolha narrativa muito estranha. Por mais que em diversos pontos Milton faça personagens apontarem o demônio como mau em mais de um ponto ele parece o personagem mais razoável de todo o poema. Em contrapartida os personagens Deus e Cristo são bem problemáticos, e aqui é preciso que se fique clara a ressalva, o problema é a construção que Milton utiliza, que recontando o texto original falha em tornar o ponto de vista desses personagens crível.
O poema em mais de um ponto parece mostrar o ponto de vista de um rebelde em oposição a uma divindade tirânica. Todo o Canto envolvendo a guerra celeste soa estranho, Milton subverte o porquê da glória do Filho no texto bíblico, lança dúvidas sobre a hierarquia celeste e mesmo o motivo da queda de Lúcifer é modificado, ficando desconexo. Se no texto original temos um arcanjo que se rebela por vaidade, aqui temos um anjo de hierarquia incerta que se sente enciumado e preterido, parece uma mudança sutil, mas não é. Nesse mesmo Canto Milton insere o talvez maior problema do poema, no início do conflito somos levados a crer que os anjos guerreariam e poderiam por si só resolver o conflito (o texto original nos aponta isso) . Milton, porém iguala rebeldes e revoltosos fazendo sua Divindade dizer que o conflito não poderia ser resolvido sem a intervenção do Filho, que o conflito se prestaria a demonstrar a superioridade e poder Deste. Para além do problema numérico, um terço contra dois terços nunca poderia ser uma luta equilibrada, (ainda mais considerando os arcanjos como sete, do lado dos fieis ainda restariam seis arcanjos); porquê essa Divindade permitiria três dias de conflito inútil? Milton não contente com o já existente problema de um Deus Onisciente permitir a Queda, problema que o poema deveria de alguma forma justificar; incluí ainda mais uma inconsistência e a resolve de forma que soa como uma Divindade vaidosa e um tanto sarcástica. Novamente algo muito estranho para um texto com um viés doutrinal. Parece mais um Canto ironizando o direito divino dos reis do que qualquer outra coisa, com alguma irônica referência ao uso de seus exércitos e do abuso de poder.
Nos Cantos seguintes onde Milton vai se propor a antever a Queda temos o já citado problema da Onisciência, que até aqui ok, ainda que sim, Milton poderia ter trabalhado melhor o argumento de que a Queda seria permitida. O autor faz seu personagem Deus anunciar a Queda, afirmar que o homem poderia resistir por si só, mas não apresenta nenhuma justificativa para tal. Mesmo o envio de um anjo alertá-los parece mais um jogo um tanto sádico do que uma real advertência. O texto falha em argumentar que até mesmo a Queda faria parte de um plano divino muito maior, aparentemente Milton espera que o leitor leia com essa doutrina em mente, mas o texto em si não a sustenta.
Adão e Eva por outro lado são personagens que não parecem coesos, Milton comete liberalidades que comparadas com o texto original fazem o leitor ter indagações que não deveria ter. Por exemplo a árvore proibida é referida como capaz de dar ciência do bem e do mal, entretanto em sua entrevista com o anjo e mesmo antes o personagem Adão dá mostras de uma inteligência e conhecimento que simplesmente não condiz com a inocência que o personagem deveria ter. Até questionar o anjo sobre mecânica celeste, Adão questiona, e por mais que se entenda que tal diálogo é uma artimanha para um argumento contra "curiosidades vãs" soa incoerente com o personagem. Outro ponto de estranheza se refere a criação de Eva, o autor ousadamente propõe um diálogo de Adão pedindo uma companheira, segue-se o diálogo onde a Divindade jocosamente indaga Adão se Ele seria imperfeito já que sendo o que É tem de ser só. É um diálogo deveras interessante não há dúvida, mas meio inconcebível para um ser "inocente" frente a um Ser que Adão intuitivamente sabe ser imensamente mais poderoso do que ele.
Quanto a Eva temos uma ambiguidade que soa incômoda, o autor não se decide se a descreve como uma deusa, se lhe exalta a pureza e ao mesmo tempo insiste em sua inferioridade sem demonstrá-la. É um tanto inconcebível que tenhamos um Adão recém criado com uma sabedoria imensa e uma Eva um tanto parva que até se assusta com o seu reflexo na água. Eva é retratada como um ser sublime, mas tolo, com olhos só para Adão, a quem remete uma adoração que poderia até ser lida como idólatra.
Aliás talvez no vínculo dos dois é que tenhamos um dos pontos mais interessantes do poema, Milton introduz a curiosa ideia de uma Eva que peca por vaidade, um tanto estranho dada a construção da personagem, mas deixemos passar; Adão porém cede por paixão, Milton sugere que Adão peca por amar Eva mais do que a Deus. É uma interpretação bastante moralista e já anteriormente o poema pesa a mão nesse sentido, na advertência do anjo no Canto anterior quando Adão diz "perder a cabeça" por Eva e nos cantos seguintes à Queda teremos outros versos onde esse ceder a paixão é rechaçado.
Os Cantos subsequentes à Queda são bastante interessantes, seja porque de fato Milton consegue passar a ideia de personagens transtornados e as mútuas acusações e rancores são críveis, quanto pelas discussões levantadas, até mesmo sobre suicídio, o que é bem inesperado. Nos Cantos finais, entretanto o poema perde a força, seja pelo tedioso reconto da história humana sob a ótica cristã (com alguns bons momentos como o reconto dos eventos pós-dilúvio), seja pelo argumento da volta do Filho e consequente vitória final da humanidade. É estranho pensar que Milton tenha se demorado tanto em recontar a história humana e não justificado esse amor do Filho. Sendo um dos fundamentos da doutrina cristã é estranho e curioso Milton não ter se dado ao trabalho de melhor desenvolver esse argumento. A despeito desse anticlímax os versos finais mostrando o casal saindo do Éden são bastante poéticos e imagéticos.