Roberto Soares 17/09/2021Ao lado de Homero, Virgílio, Dante e Shakespeare, John Milton surge com seu "Paraíso Perdido" como uma das maiores obras do topo do cânone literário ocidental, tida por muitos como a maior de língua inglesa.
São 10.565 versos de um poema épico de beleza incomparável, que narrará o Pecado Original: a queda de Lúcifer e sua subsequente vingança ardilosa, ao se esgueirar pelo recém-criado Éden com o intuito de arruinar a humanidade, levando-a à desobediência através da prova do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, única proibição em um paraíso de prazeres.
O "Paraíso Perdido" pode ser pensado como uma exposição de ascensões e quedas: de Lúcifer e seus companheiros, de suas altas posições no Céu etéreo para as profundezas abaixo do Caos, onde a própria escuridão é palpável; a abundância de Adão e Eva no Éden paradisíaco, e sua queda que arrastou consigo toda a Humanidade para a terra onde mana a dor, o suor e a morte.
Os personagens de Milton podem ser às vezes difíceis de apreender, pois embora emulem, não são seres humanos: são anjos, deuses, espíritos, forças elevadas; mesmo Adão e Eva são demasiadamente idealizados para experimentarmos alguma identificação, pelo menos não antes da Queda.
Mas sem dúvidas o astro de "Paraíso Perdido" é seu herói-vilão: Satã. Harold Bloom diz que o modo como você vai ler "Paraíso Perdido" depende muito de como você vai ler Satã, e isso fica bem evidente desde o início do livro: Satã despertando com suas legiões em uma condição ao mesmo tempo desesperadora e soberana, caído sim, mas anjo ainda. Tudo está perdido, mas ele declara possuir quatro forças que o movem mais que qualquer providência: vontade, vingança, coragem e ódio. E então Milton cria um Satã de Milton como o arquétipo do Ressentimento, o modelo daquele que está magoado por não ter seu mérito reconhecido, tendo seu lugar subitamente ocupado por alguém que julga ser indigno (o filho do dono).
Mas o autor não fecha os olhos para a perversão, ambição e a falsidade de Satã, vulgar, pretensioso e pouco conhecedor da própria natureza e condição; mas ele também não ignora que o caído sofre, caído sim, mas arcanjo ainda, e tem dentro de si um senso de heroísmo, carisma e determinação, resquícios da sua essência divinal. Mas mesmo estes sinais vão se perdendo à medida que ele se entrega cada vez mais à Paixão, embaladora do Pecado (ou, no caso do livro, dA Pecado), e então "Paraíso Perdido" se mostra também livro sobre a Paixão e seus riscos quando triunfa sobre a razão. Daí que o caminho de Satã, pai do Ressentimento, se cruza ao de Eva, mãe da Paixão, a quem parece ser quase impossível Milton descrever sem um tom erótico, mas um erotismo dirigido menos a uma mulher, e mais a uma deusa, quase parecido com Homero descrevendo Afrodite ou Hera.
Diante dessa dupla, Adão, herdeiro da Razão, se torna um humilde figurante no grande espetáculo do Pecado Original. O único conhecimento do bem e do mal visível foi a diferença do bem que perderam e do mal que os esperam. Enquanto Eva, ardorosa, se volta para a abstinência ou o suicídio como escape da maldição, Adão salva a humanidade apelando para a contrição, a submissão e o cultivo de virtudes, ambos só alcançáveis através da Razão. Deste modo, embora Satã seja o herói da causa própria, Adão é o herói da raça humana, abrindo caminho o Filho, segundo Adão, Grande Herói final.
Por fim, foi uma leitura vagarosa, por vezes árdua, mas nunca desagradável: a recompensa é diretamente proporcional ao dispêndio que você está disposto a entregar para conseguir penetrar o melhor possível na poesia de um autor altamente erudito, profundo e inspirado. Pensando nisso me vem à mente as palavras de agradecimento que Adão direciona ao arcanjo Miguel, após este lhe esclarecer o que ele e Eva precisarão conhecer para viverem bem sua nova vida mortal: "Irei daqui instruído/ Na maior das lições, e em paz de espírito,/ Da ciência levo a soma deste vaso;". Vaso este que se trata da Natureza Humana, com sua soma de corpo e alma.
Embora eu não seja adepto a nenhum tipo de religião, acho fantástico o modo como a narrativa judaico-cristã compilou os grandes mitos e arquéticos fundadores da cultura humana, como a perda do Paraíso, o dualismo Bem/Mal, corpo/espírito, razão/paixão e vida/morte, bem como as formas de contato com um deus eterno. E curioso que, embora não seja esta a proposta do livro, ele funcionou pra mim também como um ótimo preenchedor de lacunas dos textos bíblicos, que podem ser frustrantes ao narrarem em poucas linhas, e às vezes de forma indireta, histórias que permeiam o imaginário humano há milênios, instruidoras do nosso conhecimento sobre a natureza humana, de corpo e alma, e que Milton, na minha opinião, refina, através da poesia mais impecável e comovente que já li.