Leila de Carvalho e Gonçalves 17/06/2022
O Semi-Deus
Você sabia que o badalado filme "Apocalipse Now", dirigido por Coppola, foi inspirado no livro "O Coração das Trevas", de Joseph Conrad? A principal diferença é que a película tem como palco a Guerra do Vietnã, ao passo que o romance foi ambientado no Congo durante a virada do século, quando o país era propriedade particular de um genocida, o rei belga Leopoldo II.
Considerado o melhor livro escritor, ele é uma pertinente crítica ao imperialismo e colonialismo europeu, curiosamente, escrito durante o apogeu desse processo histórico. Lançado em capítulos, pela Blackwood?s Magazine entre fevereiro e abril de 1899, ele só chegou às livrarias três anos depois e seu sucesso não foi imediato, levou décadas para ser reconhecido. Todavia, de acordo com Harold Bloom, "hoje em dia, por conta de sua ambiguidade, é a obra da literatura mais analisada em colégios e universidades norte-americanas".
Com resquícios autobiográficos, "O Coração das Trevas" exibe uma história dentro de outra história. Enquanto uma escuna aguarda condições mais favoráveis para navegar pelo Tâmisa, um marinheiro chamado Charles Marlow (personagem recorrente em outros romances do escritor) narra para os colegas sua aventura na África, quando foi contratado para transportar marfim num barco a vapor. No entanto, seu serviço mais urgente era resgatar à civilização o Sr. Kurtz, um comerciante que comandava um posto de troca no meio da selva e era considerado um semi-deus pelos nativos.
Tendo como fulcro o isolamento, as condições extremas além do eterno conflito entre ser e parecer, o livro revela-se audacioso, experimental e controverso, mas também muito humano. São inúmeros os absurdos e atrocidades ao longo da leitura, desde o cruel tratamento dado aos negros até a desmesurada ambição dos colonizadores, estabelecendo outra discussão: a quem cabe o papel de herói nessa história, se é que ele existe.
?Coração das Trevas? tem enfrentado duras criticas por parte dos escritores pós-colonialistas, em virtude da maneira como os nativos são retratados. Por exemplo, o nigeriano Chinua Achebe, conhecido como patriarca da novela africana, afirma no livro?An Image of Africa? que a narrativa é "ofensiva e deplorável, pois desumaniza os negros". Mediante essa perspectiva, outra recomendação é "O Africano", de Jean-Marie Gustave Le Clézio, vencedor do Prêmio Nobel de 2008, que passou parte da infância na Nigéria.
Com o costumeiro cuidado dispensado às edições pela Editora Antofágica, o livro apresenta nova tradução, a cargo de José Rubens Siqueira, ilustrações de Cláudio Dantas e quatro textos que redimensionam o entendimento da história. São eles:
* Apresentação (Filipe Nobre Figueiredo)
* Colonização e Loucura (Christian Ingo Lenz Dunker)
* Da Foz à Nascente (Ana Maria Bahiana)
* Imperialismo, Colonização e Racismo (Sílvio Luiz de Almeida)
Com aproximadamente 220 páginas, este é um romance denso e doloroso cuja leitura foi mais lenta do que previ. Esteja preparado para penetrar no abismo da mente da mente humana, uma aventura que ninguém sai ileso.