ReiFi 27/08/2015
F - Quando uma entrevista com o autor meio que esclarece tudo
Por José Reinaldo do Nascimento Filho
Terminei.
Lá estava eu de viagem e sem mais nenhum livro para ler. Havia eu terminado o grandioso e inventivo Deuses Americanos, de Nail Gaiman (vide resenha de Leonardo aqui) e fiquei assim, tendo de apreciar as paisagens do nosso Brasil rumo ao Sudeste, e como boa parte da paisagem era composta de serras e árvores e postos de gasolina e mais serras e mais árvores e pastos, aproveitei uma das paradas num dos shoppings em São Paulo para abastecer minha maleta com alguns livros. Como precisava escolher às pressas, bati o olho nesse novo romance do jovem e promissor escritor gaúcho, autor de Areia nos Dentes (vide resenha aqui); li a sinopse, achei curiosa a ambição da história, queria ler alguma coisa dele, então, comprei.
Na contracapa nós lemos:
“Em seu segundo romance, Antônio Xerxenesky dá voz a Ana, uma assassina de aluguel brasileira que, em 1985, é contratada para dar fim a ninguém menos do que Orson Wells. A tarefa, no entanto, revela-se mais complexa, pois ao conhecer a obra cineasta, Ana embarca em uma jornada sem volta mundo da cinefilia e da arte que a fará questionar sua missão.
Atravessando três cidades – Rio de Janeiro, Paris e Los Angeles -, F nos transporta para a colorida e sombria década de 1980, mostrando o nascimento de uma geração narcisista que tem a estética como única ética possível.”
Imagino que a primeira palavra que vem à mente de todos que leem essa sinopse é: pretensioso. Nada contra quem pretende se arriscar, tentar fazer algo a mais na escrita, mas para tal é preciso muito mais do que pretensão e uma boa ideia de romance. E é justamente nesse quesito que o jovem escritor parece se perder. O plot para a trama teve peso demais para que ele sustentasse e conseguisse alcançar a credibilidade do que estava sendo contado.
Meu primeiro problema com o livro se deu logo ao folhear a primeira página. Nesta o autor procura chamar a atenção nos dando uma ideia sobre a sua heroína. Pois então vejamos:
“Aos vinte e cinco anos de idade, eu pensava já ter visto muitas coisas na vida. Havia presenciado uma decapitação, dois enforcamentos, uma castração, três mortes causadas por queda de um lugar alto, uma cabeça destroçada por um tiro de espingarda, pessoas importantes e ricas desabadas no meio de uma multidão após um disparo de rifle, um ex-nazista sofrer um ataque cardíaco nada acidental, um pedófilo despencar no poço de um elevador e mais uma dúzia de rostos rígidos e frios, alguns litros de sangue e malas cheias de dinheiro vivo. Naquela época, olhava para esse histórico com orgulho: quantas garotas da minha idade podiam dizer que testemunharam tudo isso? A maioria nem viu o cadáver do avô tranquilo no caixão.”(pág. 11)
Se a intenção do autor foi a de segurar o leitor, ele conseguiu. A gente fica curioso para saber como uma jovem chegou a esse ponto. E eu continuei lendo. Escrita simples, formal. Aqui, assim como acontece com autores do estilo de King, Gaiman e Wells, a história é mais importante do que o estilo, a forma.
A personagem em questão é uma figura que todo mundo gostaria de conhecer ou ser. Ela é tudo e nada ao mesmo tempo. Ela gosta de filmes (clássicos), de ler (clássicos), de música (rock, blues), é inteligente, sarcástica, independente, madura. Diz que escolheu essa vida de assassina por ela mesma e não por ter sofrido na infância ou adolescência. Ou seja: uma figura irreal, mas fácil de nos identificarmos.
(Fico imaginando se o autor não tentou fazer uma imagem da nossa geração a partir dele mesmo, alguém que vê tudo, tem acesso a tudo, mas que com nada se identifica. Num determinado trecho ela diz que gostaria de seguir um estilo, uma ideologia. Se essa for a percepção correta, não consigo visualizar uma série de pontos nessa juventude que me cerca. Enfim. Ou então eu que estou cercado por jovens errados)
Todo mundo gosta quando, por exemplo, estamos assistindo a um filme, se alguém na trama cita um outro filme, faz referências e nós entendemo-las, concordam? E esse livro é atulhado disso. E aqui vai outra crítica: foi o autor quem assistiu a esses filmes e leu os livros citados ou a personagem Ana? A impressão que me passava a todo instante era de que o Antônio queria por que queria escrever um romance e que as citações e referências a ele mesmo tivesse mais vez do que a história e a construção da personagem em si, e isso me incomodou profundamente. Eu comprei um romance, e não um artigo acadêmico.
“Fomos felizes por alguns meses. Não tenho o que comentar sobre essa época. Família felizes, afinal, são todas iguais”.
A citação acima existe não somente para exemplificar, mas para acrescentar outro ponto que me desgostou. É menosprezar demais a inteligência de você leitor se eu disser que essa frase resume um dos inícios mais famosos da literatura universal? Sim, ela é de Anna Kariênina, de Tolstói. Sim, é legal bater o olho e ver a referência. Mas quando isso se torna repetitivo e, pior, quando o autor precisa citar e explicar de onde veio a citação, Cristo!, isso se torna muito irritante e pedagógico demais. Eu me via ali a todo instante com um professor e não com Ana.
O romance, narrado em primeira pessoa, é construído a partir de três linhas temporais, e o autor escolheu intercalá-las. Nelas nós entendemos um pouco mais sobre Ana e a sua relação com a família e, principalmente, com seu pai; e numa outra a história em si sobre ela se tornando assassina, seu treinamento e o contato para matar o famoso diretor. Até esse último, nós até que conseguimos visualizar bem a personagem Ana. Ela realmente conta para nós sobre ela, seus gostos, preferências, filmes de que gostava e livros (como foram as sensações após a leitura de A morte de Ivan Ilitch). E já nessa parte eu consegui vislumbrar aquilo que mais me frustrou no romance como um todo. Ana não cita apenas o filme que mudou a vida dela, ela precisa explicar cada detalhe do filme Cidadão Kane (e de tantos outros). Não somente as impressões, e sim detalhes que nós possivelmente encontraríamos num artigo, numa monografia sobre “A importância cinematográfica de Cidadão Kane para o mundo”. Eu não estarei exagerando em dizer que 60% do livro é composto por citação de algum filme que ela viu de Orson e suas implicações para o cinema. Nada é sutil. Tudo é explicado. Nada fica subentendido para que o leitor construa também a trama. É didático demais. Novamente, a impressão de estar lendo uma monografia me saltou aos olhos.
(Tudo bem que para ela, Ana, há um motivo para assistir aos filmes: ela ficou conhecida justamente como assassina profissional pela peculiaridade dela ao construir toda uma cena sobre a morte não deixando assim nenhum rastro (nós ficamos sabendo disso a partir de um exemplo que ela deu, no seu primeiro assassinato). Contudo, será que abarrotar o texto dessa maneira foi uma escolha sensata? Bem, no mínimo, caso o leitor não goste da história de Ana, o romance serve muito bem como guia para futuras sessões de cinema e pipoca e até mesmo para ajudar-nos a analisar melhor os filmes).
Enfim, apesar disso tudo e que também estará presente, principalmente, na segunda parte do romance, existe ali um figura sendo construída, mas tudo começa a ficar meio complicado quando um certo personagem entra em cena e ela decide ir com ele para fora do país.
Ana vai embora morar com esse figura numa casa em Los Angeles. E achei curiosa essa ideia e a tentativa dela de explicar os motivos. Um estranho aparece num enterro se dizendo tio dela, em seguida manda uma carta escondido da mãe para ela e através disso e somente disso a convence a ir morar com ele noutro país.
“E ele contou. E eu respondi, com uma carta ainda mais longa, falando de minha vida, omitindo o que devia ser omitido. Nunca pensei que minha vidinha enfadonha pudesse render tantas páginas, mas talvez tudo que eu precisasse era de alguém disposto a me escutar.” (pág. 43)
(Novamente, não consegui entender esses furos ou saídas fáceis escolhidas pelo autor. Quem leu, favor me ajudar)
Ela vai morar com esse “tio” e alguma coisa acontece e ela resolve virar assassina. Foi então que eu li:
“O que fiz entre o meu primeiro assassinato e o convite para a matar Orson Wells é um trecho menos memorável da minha história, que não necessita de tantos detalhes. Se fosse um filme, seria uma sequência de cenas breves, que servem para agilizar a narrativa. O pulgilista treina, corre, sobe a escadaria imensa, dá socos em sacos de pancada…”
Na hora eu pensei: não pode ser verdade. Mas está lá, na página 101. Tudo que eu lera até então não havia me convencido que aquela piveta da classe média de família feliz do Rio de Janeiro poderia se tornar uma assassina profissional.
A história foi então se desenrolando da seguinte maneira: ela assistindo filmes para entender mais sobre a futura célebre vítima e trechos e mais trechos de explicações sobre essas películas.
Num determinado momento do livro, já para o final, eu pensei que o autor tivesse colocado um plot twist na história. Tentei meu palpite no sentido de que tudo aquilo não passara de um conto de fadas hardcore que Ana tinha inventado para a irmã doente dela que ficara no Brasil, enquanto ela, amante das Ficções, fora para os EUA tentar mudar de vida, ser grande, reconhecida, e como não conseguira isso, inventou toda essa trama engenhosa. Aí tudo faria um pouco mais de sentido. A carta testamento dela seria na verdade uma historinha, um guia prático para a irmã conhecer um pouco sobre a Ditatura Militar (leia o livro e entenda), sobre a vida em Los Angeles, sobre a ida em Cuba, sobre livros e, claro, a paixão pelo cinema após a descoberta do engenhoso Cidadão Kane. Ledo engano. O autor, apesar de criar um tipo de final no “estilo sonho ou realidade ou loucura”, tentando, também no decorrer da trama, nos transmitir a importância da ficção nas nossas vidas, construiu um final tão simplório e espantosamente frio, quanto toda a sua tentativa em tentar ser “cabeça” e ao mesmo tempo “cool” para os leitores dessa geração.
E foi na tentativa de entender um pouco mais de F que pesquisei no YouTube alguma entrevista com o autor, e então me deparo com essa aqui https://www.youtube.com/watch?v=KM7oJ3DVOEg. Se possível, vejam, porque para mim foi um pouco esclarecedora. Nela, humildemente, apesar de eu não concordar muito com isso, o Antônio não se diz escritor. Se diz leitor. Diz também que passou todo o ano de 2014 sem escrever uma linha e que só o faz quando lhe aparece uma boa ideia e então ele vai pesquisar. E esta palavra remete ao ponto chave para entender e gostar (ou desgostar menos, pelo menos para mim) de F: ele diz, na entrevista, que precisa se esforçar demais para ser mais romancista e menos acadêmico. E aí se encontra a minha dificuldade em gostar do livro. Eu procurava um romance e não um artigo ou monografia.
Fica então a mensagem aqui para você que pretende ler o romance de Antônio. Apesar de ser divertido e de linguagem acessível, a impressão de estar numa sala de aula com um professor apaixonado por literatura e filmes e música estará presente em todo o livro.
Boas leituras. Inté a próxima.
Nota 2,5 em 5