Lucas 25/12/2020
Americanah: Um romance adocicado com uma mensagem social crua e profunda
Numa época de tanta intolerância e intransigência como a atual, ressurgem discussões seculares, que até pouco tempo atrás eram bem mais discretas. Não que o preconceito aos gays ou aos imigrantes, por exemplo, praticamente inexistia, mas é um fato indiscutível que estes temas vem renovando-se no ideário popular, derivados de um discurso de ódio que não é exclusivo de um segmento político específico. A necessidade constante de negação, de condenar a postura de outrem usando argumentos acusatórios alimenta este círculo vicioso, presente em praticamente todas as esferas sociais.
A nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (1977-) é um símbolo de contrariedade desse movimento; sua arma para o combate à intolerância e a intransigência é a escrita literária. E trata-se de uma ferramenta relevante: seguramente, ela é uma das grandes escritoras do nosso tempo. Começando pelo elogiado Hibisco Roxo (2003) e Meio Sol Amarelo (2006), Chimamanda, que divide seu tempo entre Estados Unidos e Nigéria desde 1996, lançou em 2013 seu último trabalho ficcional: o livro Americanah, publicado no Brasil pela Companhia das Letras.
Sob o ponto de vista narrativo, Americanah é o relato do romance entre Ifemelu, a protagonista, e Obinze, num arco temporal que vai do início dos anos 90 até aproximadamente os anos contemporâneos. Como praticamente todos os países africanos, a Nigéria é uma nação com grandes riquezas naturais, mas com uma enorme desigualdade social: as oportunidades de ascensão social eram (e são) bem restritas. Tal fato restringe as perspectivas dos jovens estudantes, fazendo com que a ideia de migrar para países mais desenvolvidos (especialmente Reino Unido e Estados Unidos) seja comum.
É desta quase necessidade que a narrativa se desenrola. Ifemelu vai atrás de novas oportunidades nos EUA, tentando manter à distância o relacionamento com Obinze. E se esta questão da migração é o gatilho para o contexto "romântico" de Americanah, também é o pilar inicial daquela que é, segundo a minha visão, o grande baluarte da obra: a descrição crítica de todo um sistema de opressão, ora silenciosa, ora explícita, mas sempre presente, de imigrantes e do já batido preconceito contra os afrodescendentes.
O cinema e a literatura já deram inúmeras contribuições universais para que o mundo procure entender o que é o racismo nos Estados Unidos. Contudo, estas tentativas de relatar todo este universo complexo são derivadas em sua maioria de cidadãos norte-americanos: é um olhar de dentro para dentro, que pode trazer consigo alguns vícios e ignorar alguns elementos importantes. Mas a mensagem social de Americanah sustenta-se num fundamento oposto: ao expor toda esta miscelânea de questões polêmicas relacionadas não apenas ao preconceito racial, mas também à imigração, a partir do olhar de Ifemelu, todo esse universo social adquire um tom mais sombrio e, consequentemente, ainda mais detalhado.
Ifemelu possuía uma tia que morava nos EUA e partiu para a América com o objetivo de formar-se em comunicação. Sua chegada ao país é melancólica e transmite ao leitor sua leve frustração com a nova realidade, talvez fortalecida pelo olhar de quem está indo para lá para morar e tentar uma vida melhor, não apenas com o intuito turístico. Este olhar mais sombrio é o principal elemento do segundo quarto das pouco mais de 500 páginas da edição brasileira: Ifemelu viveu em condições de miséria, teve condutas questionáveis, estava mais propensa a desistir de tudo em muitos momentos, mas uma "perseverança silenciosa" a conduziu a realidades mais favoráveis.
As tais "condutas questionáveis" de Ifemelu funcionam como uma via de mão dupla: se trazem um pontual asco do leitor em relação à personagem, elas geram uma sensação de autenticidade que todo bom livro precisa passar. Chimamanda já enfatizou em várias entrevistas a sua visão sobre o ser humano e às suas imperfeições, e muito provavelmente foi com este viés que Ifemelu concebeu-se. A autora conseguiu em meio a isso algo curioso e que exigiu muito de sua criatividade literária: Americanah é um livro que traz uma forte voz de inclusão social, quebra de barreiras e a crueza do racismo, mas com uma protagonista que não é necessariamente a heroína da história. Ifemelu é, de fato, o canal pelo qual esses ideais libertários são expostos, mas todo este conjunto de valores precisa ser tomado em sua plenitude dentro do livro. É uma personagem fascinante não pela sua plena correção e honestidade, mas sim pelas suas imperfeições, que fazem dela um tipo essencialmente real.
Ifemelu, com uma mente silenciosamente crítica, acaba fazendo um blog e é por meio dele que ela se estabelece na América. Para a narrativa em si, é esta a importância do blog; mas é a transcrição literal de vários dos seus posts que trazem a abordagem crítica com relação ao racismo estrutural que existe nos Estados Unidos e que forma a grande mensagem de cunho social que Americanah traz ao leitor. São inúmeros os ângulos abordados por Ifemelu durante sua vida nos EUA sobre o racismo: a questão de negação histórica, de que os negros são racistas por abordarem essa questão, a dívida moral que existe com os negros e afrodescendentes (e que nos Estados Unidos deriva de datas bem mais recentes que aqui no Brasil), a crueza com que barreiras são construídas para que afrodescendentes não entrem em determinado círculo, o impacto que a primeira eleição de Barack Obama em 2008 causou em todo este enorme segmento social, etc. Algumas destas mensagens não aparecem necessariamente nos posts do blog, estando explícitos na narrativa. A questão do visual, por exemplo, das tranças e do cabelo das mulheres africanas, que, sendo exaustivamente trabalhada por Chimamanda, serve como uma metáfora precisa da questão da identidade dentro desse ambiente repressivo; ou a sutil e triste conclusão da protagonista, que percebe e se dá conta de que é negra apenas quando chega nos Estados Unidos... Americanah presta, com esse tipo de atitude, um grande serviço social para que se compreenda melhor o racismo que existe sim, nos Estados Unidos, no Brasil e em praticamente todos os lugares (e, sutilmente, quem nega isso nunca enxergou a cor da pele como um possível entrave a qualquer tipo de ascensão social).
Americanah é, por isso e por ser um romance com elementos "agridoces" que não comprometem a qualidade da obra, um livro impactante e importante para o contexto atual. Certamente, será um dos livros que as gerações futuras se lembrarão, assim como O Sol é Para Todos (1960), da norte-americana Harper Lee (1926-2016), que também aborda o racismo. A mais recente obra de Chimamanda Ngozi Adichie serve, neste contexto, para que na contemporaneidade destas mesmas gerações futuras o racismo não seja mais um tema tão atual assim e que o mundo em que lá estivermos vivendo seja mais humano, receptivo e menos intransigente com relação a uma circunstância tão infantil quanto à cor da pele de cada um.