Acad. Literária 22/07/2015
RESENHA - A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison
Essa resenha foi publicada no blog Academia Literária DF
Em um Brasil retrofuturista onde serviçais robóticos e geringonças apocalípticas coexistem com o sobrenatural, o jornalista Isaías Caminha desembarca em Porto Alegre para cobrir a prisão do infame assassino Dr. Antoine Louison, aprisionado no lendário asilo São Pedro para Psicóticos e Histéricas. Na noite anterior à sua execução, porém, o facínora escapa, desaparecendo como um fantasma de folhetim.
À medida que Isaías embrenha-se no mistério do desaparecimento de Louison, passa a questionar seus próprios valores, forja amizades improváveis e une-se ao Parthenon Místico – sociedade secreta que reúne o imortal satanista Solfieri de Azevedo, o cientista louco Dr. Benignus, a médium indígena Vitória Acauã e os aventureiros do oculto Sergio Pompeu e Bento Alves.
Mistérios e segredos envolvendo o “Caso Louison” desafiam a lógica de quem tenta descobrir a verdade. Está preparado para a Lição de Anatomia?
Tudo começa quando Isaías Caminha, um jornalista correspondente do jornal “O Crepúsculo”, parte do Rio de Janeiro para Porto Alegre com a missão de escrever uma reportagem completa sobre o caso Louison. Antoine Frederico Louison, um importante médico, ensaísta e pintor da cidade foi acusado do desaparecimento e assassinato de integrantes da alta sociedade porto alegrense. Em suas investigações acerca do ocorrido, o jornalista conhece uma linda mulher chamada Vitória. Esta pede para que Isaías leve uma importante mensagem a Louison. Mal sabia ele que já estava inserido em um mundo completamente novo e instigante, onde novas aventuras e amigos improváveis o aguardavam em um estratagema intrincado de libertação, onde o certo e o errado se torna uma questão de pontos de vista.
O livro é narrado por várias pessoas, um recurso que o autor adotou para dar várias perspectivas sobre a trama acerca da prisão de Louison. Confesso que demorei muito mais que o normal para ler a primeira parte do livro, que é narrada por Isaías. Acho que por não estar acostumado com o modo de escrita do autor, acabei arrastando a leitura, chegando ao ponto em que tive de dar um tempo no livro, pois não estava conseguindo me concentrar direito. Isso, claro, caiu por terra a partir do segundo ato (Alienados e Alienistas), onde Simão Bacamarte relata seus dias como chefe do aliso São Pedro para Psicóticos e Histéricas. O fato é que alguns relatos foram um pouco cansativos de ler, porém, necessários para dar continuidade à história. Outros despertaram todos os meus sentidos com uma narrativa densa, cheia de detalhes e mistérios que se acumulam a cada página virada.
Eu já assisti a muitos filmes que incorporam o estilo Steampunk. “A Liga Extraordinária”, “Sucker Punch”, “Van Hellsing: O Caçador de Monstros” são alguns exemplos. Porém, ainda não tinha tido o prazer de ler uma obra do gênero. Minha primeira experiência foi com a obra de Enéias e posso dizer que saí dela desejando outros títulos do gênero o mais rápido quanto for possível. O autor ambientou uma Porto Alegre retrofuturista com muito êxito. As descrições das máquinas e o uso delas por meio dos personagens na obra são de encher os olhos e aguçar a imaginação.
Apesar do tom fantástico com que a obra se apresenta, “A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison” tem toques ferozes de suspense e terror que acabam meio que nublando o fantástico, deixando um rastro de sua passagem como fumaça de trens a vapor. Então, caro leitor, fique avisado que ao invés de encontrar heróis duelando com vilões em cima de zepelins ou mocinhos salvando donzelas em meio a combates contra autômatos, você vai encontrar relatos de cruéis assassinatos, loucuras, depravações, vinganças, investigações dignas de um thriller policial e reflexões filosóficas que podem desafiar nossas convicções.
Como a obra se passa em 1911, certas falas, maneirismos e descrições são intrínsecos à época retratada. Então, algumas palavras, por exemplo, seguem a grafia usada na época. O autor chega a dar um aviso antes do início da obra explicando seus motivos para o uso de tal recurso. Podemos ver vocábulos como “eléctrico”, “photos”, “phographam”, entre outros. Além disso, nota-se o extenso trabalho de pesquisa que o autor se preocupou em fazer para ambientar seu livro. Nele, Enéias faz, por exemplo, uma abordagem brilhante de fatos sociais que eram fortes para a época como o racismo, a descriminação contra as mulheres e o fim da escravidão. Cabe um parêntese aqui: o autor descreveu em sua obra que, com o fim da escravidão, os senhores que perderam sua mão de obra escrava começaram a importar robôs para substituí-los! E não só isso. Como uma analogia aos tempos atuais, o autor descreve como as máquinas tem substituído gradativamente o trabalho humano.
Genial, devo comentar, a ideia do autor de “pegar emprestado” personagens ícones de grandes autores da nossa literatura clássica. Solfieri, de Álvares de Azevedo; Simão e Evarista Bacamarte, de Machado de Assis; e Isaías Caminha, de Lima Barreto são alguns exemplos de personagens que o autor ambientou em sua obra. E mesmo sendo personagens de domínio público, o autor teve todo o cuidado do mundo para preservá-los e dar os devidos créditos a seus criadores. Em entrevista concedida ao blog em maio, Enéias justificou sua escolha por ressentir-se com a maneira formalista com que os personagens eram ensinados na escola. Ele queria, por mais ousado que fosse a ideia, recuperar com a série, a energia, o encanto e a violência desses personagens. Devo dizer que ele acertou em cheio, pois ao ler a obra, bate aquela curiosidade de ler essas histórias, pois aquele pré-conceito velado em minha memória dos tempos de vestibular me afastou de muitas dessas histórias. “A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison” me deu um certo ânimo para dar uma nova chance a tantos imortais que abandonei nos tempos de escola. Além disso, há claras referencias a obras de grandes autores da literatura estrangeira como Anne Rice e Alan Moore e obras como “Watchmen” e “A Divina Comédia”.
Mas não se engane se pensa que a obra do autor se apoia inteiramente nesses mestres. Longe disso. A figura de Louison é o grande destaque de sua narrativa. Ele me pareceu, à primeira vista um lunático, mas, como em toda boa obra, as aparências enganam. À medida que fui conhecendo os personagens que o rodeavam, fui percebendo que Antonie Louison talvez seja o mais lúcido de todos. Não pude deixar de ficar empolgado com a narrativa toda vez que ele aparecia. Suas atitudes e formas de falar me lembraram bastante o personagem protagonista do filme V de Vingança, embora o autor tenha dito em nossa entrevista que Louison seria uma versão de Jack “o estripador”; Beatriz é, talvez, a personagem que tem o melhor plano de fundo da obra; Pedro Britto Cândido é o mocinho que prende o vilão, mas como eu mesmo disse que o buraco é mais embaixo, quem é o real vilão? O Pathernon Místico e a Camarilha da Dor são outros exemplos de como a criatividade do autor trabalhou para dar vida ao universo da obra.
Eu me surpreendi muito com a obra. Enéias tem um ótimo vocabulário (meu dicionário ralou bastante) e habilidades de escrita excepcionais que são usados ao máximo na obra. O autor conseguiu criar um enredo cheio de reviravoltas que certamente deixará o leitor preso à trama até a última página. Juntando isso ao cenário retrofuturista de máquinas a vapor, autômatos robóticos, dirigíveis modernos, artefatos místicos e toda a sorte de itens inimagináveis, “A Lição de Anatomia do Dr. Louison” tornou-se uma das minhas obras preferidas do gênero. E mal posso esperar para o próximo volume.
A obra é narrada em primeira pessoa em forma de relatos. Sejam eles por telégrafos, noitários, cartas ou mensagens gravadas por serviçais robóticos. Logo, a construção narrativa dos personagens se dá pela ótica de cada envolvido na trama. À medida que os personagens vão relatando sua parte na história, vamos conhecendo suas caracterizas, seu passado e principalmente seu envolvimento com o Dr. Louison. A relação temporal é linear, porém em certo momento a trama volta ao passado para contar alguns trechos que antecederam a captura de Louison. O leitor tem de estar atento às datas de registro, pois elas são de grande valia para que não nos percamos na narrativa. A revisão e a formatação da obra estão impecáveis, sem erros aparentes. O livro é divido em seis partes, uma conclusão e um pequeno interlúdio, onde temos acesso a um trecho do diário de Louison. Cada parte é composta de vários relatos dos personagens da história, cada um contando um acontecimento sob seu ponto de vista. Há um mapa de Porto Alegre no início do livro e logo na página seguinte, uma leve descrição dos personagens da obra. Ao final os agradecimentos do autor. E o que dizer da capa? Sensacional. Eis um livro que chama atenção só de olhar a capa.
“A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison” é uma obra que brinda o clássico em tempos modernos. Que instiga e inspira o leitor a querer conhecer um pouco mais sobre os nobres aventureiros criados por imortais da literatura que tantos de nós passamos a repreender nos tempos de vestibular. Recomendo a leitura primeiramente para os fãs do gênero Steampunk. Enéias não poupa detalhes ao descrever dirigíveis, robóticos e outras maravilhas de metal e silício. Aos leitores fantásticos e aos que adoram um suspense. Ao mesmo tempo em que descrições de encher os olhos sobre máquinas e aventuras adentram o nosso imaginário, o autor também nos leva por caminhos tortuosos e misteriosos, testando todas as nossas convicções morais e sensos do que é justo ou não. Pessoas de coração e espírito sensíveis devem pensar quatro vezes antes de ler a obra. Em especial os trechos que compõe os atos da seita “Camarilha da Dor” e o diário de Louison (o título do livro faz jus ao que está escrito nessa parte). E finalmente, aos fãs da nossa literatura nacional. Não só o cenário, como também muitos personagens são extraídos da nossa própria gênesis literária. A obra de Enéias Tavares dá uma verdadeira lição de como a literatura clássica pode se mesclar ao contemporâneo, assim como o passado se mescla ao futuro no gênero Steampunk.
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