Lucas 28/01/2018
De Florianópolis para o mundo: como o "Vai, Cavalo!" tornou-se "Allez, Gugá!"
"Caramba, chega o Natal e esse jogo não acaba mais! Se o Guga perde esse set, a coisa ficará feia". Esse era o relato que se ouvia numa residência do interior de Santa Catarina na manhã de 11 de junho de 2000, um domingo gélido, comum nessa época do ano nestas paragens. Mas comum não era o que se vivia no âmbito esportivo nacional da época.
Após a enorme frustração com a perca da Copa do Mundo de 1998 e a desconfiança com que se encarava o primeiro ano de Rubens Barrichello na Ferrari, o esporte brasileiro, que se apoiou na década de 90, em grande parte (além do futebol, lógico) na Fórmula 1, tinha um novo ídolo carismático ao extremo: Gustavo Kuerten e seus gritos, traziam um novo sentido ao verbo torcer. Cânticos futebolísticos agora, mesmo que momentaneamente, eram simbolizados também pelo silêncio profundo que precede um saque no Tênis, esse esporte complicado, mas incrivelmente dinâmico.
Antes da data do relato inicial da resenha, Guga já tinha feito história: tinha ganho o Aberto da França (Roland Garros) três anos antes, em 1997. No suor, na raça e com uma disposição impressionante, o catarinense chocou o mundo não só por ter sido o tenista de ranking mais baixo a ganhar o principal torneio de saibro (recorde que permanece até hoje), mas porque ele reunia todas as condições contrárias ao Tênis bem jogado: magro, desengonçado, cabeludo, com uma roupa colorida, Guga era um cara que, num primeiro momento, poderia ser encarado como um juvenil qualquer (a idade, 20 anos, reforçava essa primeira impressão). O título, o primeiro de um brasileiro em Grand Slam's desde Maria Esther Bueno em 1966 no US Open, é o grande destaque da biografia de Guga, lançada em 2014. É a "história" que mais ocupa as páginas, de uma forma justa: se não foi o maior título dele, certamente foi a maior façanha da sua vida.
A biografia é uma espécie de depoimento ao jornalista Luís Colombini, que deve ter organizado os capítulos e a narrativa em si. Mas se percebe, claramente, que cada linha do livro saiu da boca de Guga, num relato autêntico e muitas vezes divertido, como é o biografado. Sempre bem-humorado, espontâneo e humilde, o florianopolitano trás em suas páginas, no entanto, uma imensidade de pedreiras que a vida jogou para o seu lado. Vivendo em uma família simples, perdeu a referência paterna de forma precoce quando tinha 8 anos. Era o filho do meio da família, sendo que o caçula tinha limitações físicas e mentais. Estes detalhamentos são tão ou mais tocantes que as descrições minuciosas das partidas que disputou.
Duas coisas são necessárias para que se encare a biografia de Guga como excepcional em sua plenitude. A primeira delas é ter uma boa compreensão do Tênis, esporte complexo e fascinante. De antemão, é adequado que o leitor tenha claro na mente que jogar Tênis não é simplesmente "jogar a bola em lugares onde o oponente não alcança". Apesar de que a essência é essa, como o próprio Guga cita no livro, uma imensidade de fatores invisíveis é determinante: o psicológico, por exemplo, é tão importante quanto o físico. Mais do que músculos e habilidade, a cabeça deve estar boa. Tênis nada mais é do que um esporte que combina xadrez e maratona: esforço mental e físico, ambos intermitentes. O segundo aspecto que torna a biografia de Guga ainda mais engrandecedora é um conhecimento prévio mínimo do contexto tenista da época. Isso é essencial para que, quando Guga falar que venceu os russos Yevgny Kafelnikov e Marat Safin, o ucraniano Andrei Medvedev, os espanhóis Sergi Bruguera e Àlex Corretja, o leitor consiga dimensionar o tamanho das conquistas que as vitórias sobre essas lendas e muitas outras representavam.
Dentro dessa contextualização, a menção aos norte-americanos Andre Agassi e Pete Sampras é primordial para que se tenha uma ideia ainda mais clara dos feitos de Gustavo Kuerten: nem antes nem depois, alguém derrotou, num único torneio e num espaço de tempo de cerca de 48h, ambos, dois dos maiores tenistas da história, na Masters Cup de 2000, que reunia os melhores tenistas do ano e cuja conquista levou Guga ao posto de número 1 do ranking. Sampras, principalmente, era tido, de forma irretocável por muitos entendedores do assunto como o maior de todos os tempos, antes do advento de Roger Federer e Rafael Nadal. Dono de um saque monstruoso, até hoje o seu nome é sinônimo de Tênis bem jogado. Então, conhecer o currículo dele e de Agassi é formidável para que se esclareça o que Guga conseguiu superar para se tornar eterno.
Se faltou o pai em grande parte da sua vida, Guga dá um destaque enorme e justo ao gaúcho Larri Passos, seu treinador, que assumiu ares de paternidade durante a trajetória profissional. A parceria dos dois, no entanto, terminou abruptamente, gerando margem para boatos. É uma das pequenas deficiências da biografia, que não discorre muito sobre isso. Fica-se, no entanto, a certeza que Larri construiu residência fixa no coração de Guga: a volta da parceria no fim da carreira e todo o seu sucesso nas quadras é creditado em grande parte ao seu treinador, assim como a sua mãe e o restante da família, cuja relação é valorosamente descrita. Sua jornada foi curta: o auge do seu talento foi breve, ainda mais se for comparado com a idade dos melhores tenistas atualmente. Mas, mesmo com as intensas dores no quadril que marcaram o fim da sua carreira, Gustavo Kuerten tornou essa sua trajetória no tênis uma viagem feliz e de muitas realizações.
"Tive que lidar com o cansaço, guerra de nervos, enxurrada de emoções, frustração, desesperança, erro de juiz. Se eu tinha contornado tudo jogando só com duas raquetes, conseguiria qualquer coisa, fosse com adversário impossível, debaixo de chuva, neve, geada. Foi a primeira vez na vida que me convenci de que, sim, era possível, eu tinha mesmo chance de me tornar o número 1 do mundo". Era isso que Guga pensava quando, enfim, o jogo da manhã de domingo terminou. Um catarinense tinha acabado de ganhar Roland Garros pela segunda vez, contra o sueco Magnus Norman, e alguns de seus conterrâneos (como o autor da presente resenha) estavam vendo pela televisão uma vitória sua pela primeira vez. Inesquecível, valoroso e simbólico, como tudo vindo dele, Guga não só eternizou seu nome no Tênis, como provou que nenhuma realização é impossível de ser alcançada, desde que a sua trajetória contenha valores familiares, perseverança, humildade, espontaneidade e amor à Pátria.