spoiler visualizarCarin 30/03/2024
Resenha de dois maridos e uma Flor
“A beleza está nos olhos de quem vê”, diz o ditado. De fato.
É o que acontece com Dona Flor.
Portada de uma lente cor de rosa que confunde beleza física com caráter interior, ela enxerga um perfeito galã em Vadinho, que na verdade não passa de um malandro. Não se pode dizer que Vadinho é tem carisma, ele tem. Conquista as pessoas, convence-as, mas todos sabem o que tem além de toda sua simpatia. Ele é péssimo, um boêmio para dizer o mínimo, e exagera sendo abusivo e violento, importando-se de verdade apenas com jogatina e os prazeres da carne.
Mas Dona Flor não liga, releva tudo, pois é apaixonada por ele e porque apesar de todo o mal, Vadinho também é capaz de lhe proporcionar alguns prazeres também.
Então, ele morre. Sete ou oito anos depois de se casarem. Simbolicamente, na maior festa pagã do mundo e deixa Flor presa a ele mesmo não estando mais nesse plano.
Ela demora a conseguir a seguir sua vida, demora a enxergar beleza nas coisas, apenas sobrevivendo no automático até que seus desejos falam muito alto e ela se vê considerando alternativas drásticas demais para uma mulher viúva e recatada.
Percebe uma oportunidade de se casar novamente e Dr. Teodoro aparece no momento certo.
Eles não demoram muito a casar, não fica bem para uma mulher viúva da idade de Flor ficar de namorico pela rua como era antes de se casar com Vadinho. As amigas fazem a mediação, e logo, frente a um juiz e depois a um padre, Florípedes e Teodoro se casam.
O segundo casamento é completamente diferente do primeiro, o exato oposto.
Dr. Teodoro é um príncipe, organizado, bem de vida, paciente, metódico e correto, às vezes até demais, porém Flor não quer se exaltar além do que uma boa relação pede, não quer ser vista por esse grande homem como uma devassa, apenas quer satisfazer o novo marido e ele até consegue satisfazê-la e calar suas vontades que insistiam em gritar tão alto.
Eles seguem suas vidinhas assim, tudo correto, organizado, sem problemas em qualquer área. Ao menos, nenhum que as pessoas em torno do casal pudesse apontar. Mas por dentro, Flor não é completamente ela mesma. Algo falta. Mesmo que tudo esteja certo, que Teodoro seja um homem formidável, que todos aprovem o casal, que Flor tenha seu próprio dinheiro depositado no banco e que ela seja saciada pontualmente às quartas e aos sábados (estes com repetição).
Talvez, por esse motivo, mesmo após um ano de casamento, ela ainda clame pela volta de Vadinho.
E não é que o salafrário volta!?
Do mesmo jeito malandro e despudorado, ele volta para perturbar os ânimos e o juízo de Dona Flor, pedindo-lhe ainda as mesmas coisas e tendo os mesmo desejos impuros de antes. Vadinho não muda nem depois da morte. Tampouco, Flor muda seus sentimentos por Vadinho. Ele a perturba até conseguir e a moça se entrega rompendo normas deste e de outros planos, percebendo que para ela é melhor viver com ele do que sem.
Assim, passam a viver juntos Flor e os dois maridos que em sua oposição a completam.
O livro é sensacional, Os personagens não são perfeitos, causam desconforto. Os maridos são dois opostos. Muitas vezes vi dona Flor como boba sem me atender às tradições de uma geração completamente diferente da nossa, e ignorando que a moça tem sim muita personalidade.
Todas essas indagações e reflexões é o que torna o livro tão rico. As contradições de Vadinho, como o fato de todo mundo saber que ele é um péssimo marido e um tremendo malandro, mas mesmo assim ter muita gente que o estima. Ou o fato de Dr, Teodoro ser tão elogiado por suas atitudes corretas de um marido perfeito e atencioso, mas mesmo assim Flor não quebrar as suas paredes e poder ser totalmente sincera e confortável em seu casamento com ele como era com Vadinho. Enfim, tantas coisas.
Também, pode-se considerar o livro um belo documento histórico, pois ele é eficiente em relatar costumes, tradições e comportamentos da época, contando com várias referências fiéis à arte, à música, e ainda, à culinária baiana.
Contudo, época diferente ou não, não dá para ignorar a quantidade de termos racistas utilizados ao longo da história, é algo incômodo.
Além disso, o livro enrola demasiadamente. Apesar de entender tanto enredo para poder mostrar toda a cultura, transpassar por todo o elenco de personagens e fixar bem algumas percepções, ainda acho que o livro dava para ser bem mais curto.
No mais, com a paciência que se pede, é uma história que merece ser lida por todo mundo.