spoiler visualizarManuella_3 15/01/2016
“Minha força não está na espada. Está na caneta.”
Uma história passada em um lugar por onde já desfilaram reis e rainhas, além de conquistadores de outras épocas, poderia ser tão encantadora e romântica como as dos contos de fadas. Mas a história de Malala, a menina que queria ir para a escola (Companhia das Letrinhas, 95 páginas), traz outro tipo de encantamento, extraído da dor e da coragem de lutar por uma causa tão nobre quanto simples: o direito à educação. O livro-reportagem é infantil (mas o texto não fica devendo aos grandinhos), então é nesse embalo que o leitor vai ler a resenha: senta que eu vou contar uma história...
Malala era apenas uma menina paquistanesa que queria estudar. Para nós parece tão comum e óbvio, não? Mas lá na terra de Malala isso não é. O vale do Swat, no Paquistão, é uma região muito verde, cercada por montanhas, onde vivem os pashtuns (os chamados ‘povos das montanhas’, etnia de bravos guerreiros que nunca se deixaram dominar).
“O wali (líder do principado) do Swat também achava a educação importante. Foi ele quem abriu as primeiras escolas para meninas no vale. Mas isso foi antes da guerra e de as meninas serem proibidas de estudar.”
A autora Adriana Carranca narra como conseguiu chegar ao Swat com a ajuda de um guia, passando momentos de muita tensão e perigo. Ficou hospedada na casa de Sana, vivendo com uma família típica da região, para coletar informações sobre a vida de Malala. No vale do Swat uma família mora inteirinha numa mesma casa: pais, filhos e netos, todos juntos. Na casa de Sana e Razia, muito pobre, não havia banheiro, apenas um buraco no chão. O vilarejo não possuía luz elétrica, a rotina diária era ditada pela luz do sol. Enquanto os meninos podem sair para brincar após o café da manhã, resta pouco tempo para a diversão das meninas, que ajudam as mães com os afazeres domésticos. Lá as meninas casam muito cedo, no começo da adolescência, e as mulheres são quase todas analfabetas.
Mas Malala fora privilegiada: recebera o sobrenome do pai, Yousafzai, coisa rara nas sociedades patriarcais do sul da Ásia, como o Paquistão, onde só os meninos têm essa predileção. Às meninas cabe esperar pelo casamento para adotarem o nome da tribo dos maridos, não existem oficialmente até então. Malala sempre foi muito amada pelo pai, Ziauddin Yousafzai, um professor que a estimulou a gostar de estudar.
“Malala quase sempre tirava dez. Às vezes oito, mas isso quando a prova valia oito, como na prova de física. Às vezes vinte, mas isso quando a prova valia vinte, como na de álgebra. E onde já se viu menina gostar de física e álgebra? Malala gostava!”
Pelo código de conduta nas sociedades pashtuns, as meninas não podem sair às ruas sem a presença de um homem da família. Por isso os pais são muito próximos das filhas, são eles que as conduzem ao médico, por exemplo, ou a um passeio, porque as mães são mantidas em casa. Ziauddin era o representante de sua tribo, uma linhagem de filósofos e poetas do Swat, era presidente de uma associação de escolas e militante pela paz na região, então Malala sempre o acompanhava em protestos e movimentos políticos.
“As meninas me contaram que, na escola, Malala era a mais sabida, a mais valente, a mais falante. Desde pequena, discursava como gente grande! Era a mais sorridente e também a mais confiante. Foi o que as colegas de classe me disseram.”
Para ir à escola, Malala escondia os livros sob o véu que usava e escolhia caminhos diferentes para despistar os homens barbudos do Talibã, que moravam nas montanhas, mas proibiram as meninas de estudar e destruíram as escolas. O Talibã é uma milícia islâmica fundamentalista. A história dos talibãs é bem triste, ainda crianças foram retirados de suas famílias e abrigados em internatos religiosos, quando soldados soviéticos invadiram o Afeganistão. Em vez da promessa de um lar, comida e proteção, esses meninos foram treinados com armas e tornaram-se homens muito violentos.
“Os homens destruíram computadores, câmeras fotográficas e aparelhos de TV, vídeo, DVD e som. Tomavam-nos das casas e com eles faziam enormes fogueiras nas ruas. Tudo na cabeça deles era haram (pecado).”
Foi pelo rádio, através do chefe dos talibãs, que a população do vale soube que as meninas estavam proibidas de ir à escola, mas Ziauddin Yousafzai estava determinado a não deixar sua escola fechar. E começou uma campanha:
“- Como o Talibã se atreve a tirar o meu direito à educação? - discursou Malala, ao lado do pai, (...) em setembro de 2008. Foi sua primeira aparição pública. Ela tinha onze anos.”
Malala começou a escrever um blog, usando o pseudônimo Gul Makai (nome de uma flor azul) e publicado no site de rádio e televisão BBC, da Grã-Bretanha. Através de suas palavras a tragédia do Swat ficou conhecida, especialmente o drama das meninas:
“- Minha força não está na espada. Está na caneta – ela disse, um dia.”
Apesar dos esforços do governo do Paquistão para proteger as escolas, não houve trégua e o Talibã aterrorizava a população com rasantes de helicópteros sobre as casas, toque de recolher antes do por do sol. A escola Khushal, onde Malala estudava, resistia aberta, mas o perigo era cada vez maior. Os terroristas ameaçavam explodir as escolas, como já haviam feito com muitas delas nos vilarejos vizinhos. Muitas famílias deixaram o vale. Não houve alternativa e a escola fechou as portas.
Quando, enfim, a paz voltou, as famílias puderam retornar às suas casas, mas a cidade estava arruinada! Aos poucos, as crianças voltaram a estudar e Ziauddin revelou ao mundo que Malala era a menina blogueira. Eles passaram a dar entrevistas e todos queriam saber o que tinha acontecido com a população após a guerra. Em todas as entrevistas, Malala defendia:
“- Eu tenho direito à educação. Eu tenho direito de brincar. Eu tenho direito de cantar. Eu tenho direito de falar – disse Malala a uma rede de TV internacional. Suas palavras foram ouvidas em todos os cantos do mundo.”
Os benefícios para as escolas da região vieram através do ativismo de Malala. Em 2011 ela recebeu o Prêmio Nacional da Paz, que depois foi rebatizado com seu nome. Na ocasião, contou que em vez de formar-se médica, queria agora criar um partido político para defender a educação.
“A menina de jeito doce, mas fala assertiva, desafiava frequentemente os homens que tinham proibido as meninas de ir à escola, às vezes expondo-os ao ridículo. Num território onde as mulheres tinham sido silenciadas pelo terror, Malala havia cruzado um limite perigoso. Para os sisudos homens das montanhas, ela estava indo longe demais...”
A vida seguia na reconstrução do povoado, as meninas ainda assustadas e discretas na saída da escola. O pai de Malala havia recusado a proteção do Exército para a filha, agora famosa, por desconfiar até mesmo dos soldados. Naquele ensolarado 9 de outubro de 2012, após as provas, o transporte escolar deu uma freada brusca. Um homem surgiu na traseira da pequena caminhonete:
“- Qual de vocês é Malala?
Ao ouvir seu nome na voz do estranho, ela tinha se virado intuitivamente na direção dele. Era a única, entre as meninas, que não tinha o rosto coberto pelo shawl. Então ele atirou. Três vezes!”
O tiro na cabeça a deixou desacordada e o comandante das Forças Armadas do Paquistão enviou um helicóptero para transferi-la para um hospital maior. O pai de Malala e a diretora da escola a acompanharam durante todo o resgate. Também foram feridas duas amigas que estavam sentadas próximas a Malala, mas sem gravidade.
Moniba, a melhor amiga de Malala, talhou o nome da colega na carteira onde sentavam juntas e a escola teve as paredes enfeitadas de cartões que chegavam de vários lugares do mundo:
“Querida Malala, sua força e coragem são uma inspiração para todos nós. Desejamos que você, Shazia e Kainat se recuperem logo e tenham apoio em sua luta pela educação.”
Driblando a recomendação de não falar com estranhos, as meninas da Escola Khushal passaram bilhetinhos à escritora para marcar encontros. Elas eram corajosas e queriam contar tudo à jornalista. Foi assim que Adriana Carranca conheceu Shazia, que fora atingida no ombro e na mão e estava se recuperando. Ela contou que havia sonhado com um tiro na véspera do atentado. Depois do trauma, continuava sendo um risco ir à escola e o Exército decidiu que Shazia só poderia voltar aos estudos acompanhada por soldados.
Ao visitar a outra vítima, Kainat, a autora soube que a menina já andava bem angustiada antes mesmo do ocorrido, e piorou depois do tiro no braço:
“Quando estou sozinha, aquelas cenas voltam e eu sinto de novo o cheiro... Cheiro de sangue! – ela me confessou. Por conta dessas lembranças, Kainat passou a ter medo do escuro e, quando dormia, sonhava em vermelho.”
Além de Malala, a mãe de Kainat também a inspira: ela trabalha visitando casas para ensinar noções de higiene às crianças. Daí partiu o desejo de Kainat de se tornar médica, sonho que compartilha com Shazia e que também já foi o de Malala. Medicina é uma das poucas profissões que as mulheres podem seguir no Swat.
“- O que eu gosto em Malala é que ela continuou brigando e insistindo em advogar por educação, mesmo sabendo que corria riscos. Admiro o seu jeito. Isso nos dá coragem agora.
Ao final, Kainat me fez um pedido:
- Diga às meninas de todo o mundo que se tornem Malalas e lutem por educação até que todas possam ir para a escola.”
A última parada da autora foi na casa de Malala, que estava internada e em coma. Naquele momento, em um hospital da Inglaterra, Malala lutava pela vida.
Poderia terminar a história resenha dizendo que Malala foi feliz para sempre, como as crianças gostam de ouvir, mas a sua luta está apenas começando... Malala é um ser humano ímpar, dessas pessoas que aparecem poucas vezes neste mundo, que dão exemplo de coragem, amor e empenho por uma causa. Na contramão das princesas dos clássicos infantis, quase sempre meninas boazinhas e passivas, Malala é a heroína moderna, luta pelos seus sonhos e enfrenta seus medos, uma ótima reflexão para as crianças de hoje.
Malala Yousafzai é a pessoa mais jovem a receber o Nobel da Paz (aos 17 anos!), que dividiu com o indiano Kailash Satyarthi, em 2014. Atualmente vive na Inglaterra e é uma importante voz contra a opressão feminina.
Trailer do filme-documentário: https://www.youtube.com/watch?v=yBKmxuOuZmY
Resenha publicada no blog: http://www.asmeninasqueleemlivros.com/2016/01/malala-menina-que-queria-ir-para-escola.html