spoiler visualizarPaulo 23/11/2011
A mulher em um capítulo
[Resenha publicada na internet em 26 de março de 1999.]
Que impressões tem hoje um atento leitor de Balzac?
Um admirador despretensioso dos livros (que pode ser alguém ávido por fruição simplória) poderia procurar nesse escritor francês algo já encontrado no nosso aventuroso Manuel Antônio de Almeida, no nosso novelesco Eça, no nosso picante Jorge Amado. Balzac, como se fosse um romântico (em vários sentidos), escreveu com furiosa constância ao longo de uma vida relativamente curta e cheia de peripécias — mais de cem títulos durante vinte anos efetivamente férteis.
Sua obra, com a gravidade que lhe confere o século e meio que já percorreu, ainda deslumbra por um tipo bem curioso de modernidade: a inventividade estrutural. A mulher de trinta anos surpreende em muitos aspectos, e poderia ser festejada com mérito se fosse um lançamento de nosso século. A sintaxe da linguagem pode ser clássica, mas seu padrão narrativo é especial, e o leitor é obrigado a participar com consciência dos nós da trama.
Os seis capítulos do livro são episódios cronologicamente ordenados, porém não conectados um ao outro: Balzac escolhe flagrantes da vida das personagens principais, de forma que cada passagem passa a ter, para o leitor, a novidade de um conto — em cada reinício as personagens são realmente apresentadas de novo, como se aparecessem pela primeira vez.
O destaque, no interior dessa articulação, é o trabalho narrativo do quarto capítulo. Percebemos que, ao longo do romance, o ponto de vista é construído por meio de um narrador onisciente em terceira pessoa — um narrador que comenta as motivações profundas de suas figuras, e ainda as posiciona com firmeza num cenário da sociedade. Porém, naquele capítulo especial, aparece uma curiosa alteração de foco. O narrador desce das nuvens e posiciona-se como observador da cena, atrás de algumas árvores. Não é afetação: ele até se oculta voluntariamente, num dado momento, para não constranger os amantes a que assiste. Não há o refinamento de uma criação de novo caráter, sua postura parece idêntica à do narrador dominante no livro — é que sua onisciência, na verdade, não desaparece totalmente, interferindo às vezes, mas com imensa delicadeza.
Foi uma excelente opção — a cena pôde ser relatada por um enfoque de disfarçada inocência em relação ao grave ato que ocorre: o adúltero encontro amoroso entre Júlia e Carlos de Valdenesse. Vemos uma mulher e um rapaz apaixonados, em passeio com crianças. No relato de seu contato com elas, a mulher é chamada de "mãe", mas o rapaz não é chamado de "pai". É essa sutileza que revela ao leitor cuidadoso que não se trata de um passeio dos pais, o que se pensa à primeira vista, uma vez que estão presentes crianças. Uma segunda sutileza revela: o menino Carlos, mais alinhado no vestir, era "um filho do amor", o que dá a antigüidade e o alcance do adultério — pelas dores de Júlia, não eram do amor os filhos com o marquês d'Aiglemont, seu marido. Dá-se então o trágico acidente: desprezada e nervosa, a menina Helena (filha do sofrimento conjugal, não do amor) empurra Carlos, sem prever as conseqüências. Ele morre, em sangue, no lodo de um rio. Mais uma sutileza: "Helena tinha talvez vingado seu pai".
Essas três sutilezas — participações da onisciência — compõem o material expressivo da seqüência aqui comentada, como pistas cuidadosamente plantadas pelo autor para que o leitor participe com inteligência do episódio.
Essa suave fusão de focos narrativos não corresponde ao artifício — mais moderno — que aparece em A Grande Arte de Rubem Fonseca, em que o narrador, personagem atuante, surpreende ocasionalmente por fazer algumas intervenções possíveis apenas a um onisciente. De qualquer forma, essa aproximação mostra a força inventora e avançada de Balzac.
Com profunda argúcia e análise psicológica extremada, A mulher de trinta anos é um romance brilhante do realismo francês.