dormideira 01/05/2020Para se deleitar e aprenderPrimeiro, é necessário dizer que esse livro é uma maratona.
Seja por ser a coletânea completa, seja porque cada fábula e cada ilustração de Eduardo Berliner merece um momento de reflexão próprio.
A apresentação, apesar de longa e acadêmica, é acessível e impecável, o que acaba fazendo dela uma parada obrigatória antes de ler o livro, mesmo se você, como eu, está ansioso para começar. Afinal, são milhares de séculos que nos separam do contexto cultural destes contos, e esse contexto só pôde ser determinado devido à academia e à pesquisa.
Falando nisso, a tradução (e a edição e as ilustrações) também merece destaque, já que foi capaz de converter em linguagem corrente ou objetiva, quando necessário, trazendo um estilo natural do que é popular, do que é de um povo, quase folclórico.
Não que a ideia seja diferente da que aprendemos no ensino fundamental: as fábulas aqui ainda são para deleitar e ensinar quem as “ouve”, são conhecimento popular decantado em contos, por vezes com animais falantes e com moral. A parte boa é que, teoricamente, nossa moral evoluiu o suficiente em outro sentido. Por isso, é interessante ler o livro considerando nossa vida atual e o momento histórico delas, com um olhar crítico, para aquele tempo e para o novo.
A coletânea preservou, além da linguagem, a forma, mantendo a “moral da história” no final ou no começo das fábulas. Conforme o comentário, às vezes, a moral parece diferente do que intuímos terminando de ler o conto, mas essa continua sendo a matéria do livro.
São julgamentos de casos, da contradição entre o público e o privado, entre o parecer e o ser (como o adivinho que não prevê o próprio futuro), das ironias da vida que têm como sentença um agravamento da desgraça do infeliz em questão.
Aí entra a ideia de destino, que será o juiz, advogado e carrasco. É o mesmo que emite os adágios, conselhos de “melhor seria …”, respeitando a lei do mais forte, em nome do pragmatismo e da sobrevivência estratégica. É um mundo basicamente hostil.
Por outro lado, há personagens que estão obrigados (no sentido etimológico, medieval) pelas amarras sociais, em contraste com os castigos divinos destinados aos que transgridem esse contrato.
Nesse sentido, muitas das reviravoltas (no sentido aristotélico de peripécia, a virada da tragédia) funcionam como vingança, lições pela violência. A economia de palavras faz com que todo o anunciado seja também uma premonição, um mau agouro. A voz narrativa do juiz restabelece a ordem social, a justiça, e tudo vale para nós como lições, para que não erremos, o que também é uma qualidade em protagonistas: aprender com os próprios erros e com os erros alheios.
Outro suporte do destino enrijecido são os animais representando uma natureza geral. Eles vêm para nos falar dos tipos de pessoas, como as pessoas perversas ou lobos, ou para nos explicar dados do mundo, como o motivo pelo qual todas as águias botam ovos no alto. Assim se naturalizam as avaliações das desgraças e as consequências das transgressões, através de classes, estamentos.
Outro dado é, finalmente, a beleza de muitos dos contos (como o “beijo” que o lobo dá na ferida da lebre) e das ilustrações, que na verdade são tão perturbadoras e sugestivas quanto as próprias fábulas.
Enfim, o livro é muito mais que um compêndio do ardil das pessoas ou dos perigos da natureza e suas espécies, se tornando uma bíblia muito mais divertida. Meu veredito: não dá para ler em uma sentada, mas tudo bem. Se durar mais, tanto maior o ganho.
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https://1brogue.wordpress.com/2020/01/14/para-se-deleitar-e-aprender/