Alê | @alexandrejjr 27/06/2021
Os três pês de Kundera
Milan Kundera é um dos mais celebrados romancistas contemporâneos. Não por acaso, o autor tcheco está sempre cotado para ganhar o Prêmio Nobel. Em “O livro do riso e do esquecimento”, Kundera vai guiar os leitores sob três temas principais que eu jocosamente chamarei de os “três pês” de Kundera.
Vamos ao primeiro “p”: Praga. A capital da atual República Tcheca é parte indissociável da identidade de Milan Kundera e, portanto, de sua literatura. A história reforça essa ligação. A antiga Tchecoslováquia, que foi libertada pelo regime comunista soviético em 1945 das garras nazistas, posteriormente revelou o que todos nós já sabemos: que a ambição é um mal sem limites. Sob asas soviéticas, o país que sonhava com um “socialismo de face humana” teve uma fracassada tentativa de “russificação”, culminando na famosa Primavera de Praga, em 1968, tão cara ao autor e intrinsecamente ligada à sua história. Sob a perspectiva de um cidadão exilado desde 1975, pois foi privado de sua cidadania checa até 2019, quando seu país lhe devolveu aquilo que o escritor jamais deixou de ter, Kundera exerce o olhar privilegiado de quem não tem amarras. E é através dele que tenta analisar o que significa fazer parte de uma nação que foi usurpada por ideais que pregavam a uniformização, a centralização e a completa ausência de discordância. E isso nos leva ao segundo grande tema do livro.
O próximo “p” é, talvez, o mais importante da obra: o passado. É através dele que o autor irá trabalhar filosófica e existencialmente a ideia do esquecimento e o que ele representa dentro da memória coletiva. Sob esse eixo de raciocínio é que se dá a principal ligação das sete histórias presentes na narrativa não linear do romance, que às vezes se mesclam ou se somam a outros estilos, como o conto e o ensaio, tudo sem aviso prévio aos leitores. O passado interessa muito mais que o futuro, concluirá Kundera. Mas em meio ao ousado hibridismo técnico, que impossibilita definir o gênero predominante do livro, Kundera irá mostrar que há algo que não se pode abdicar em tempo algum, o que nos leva ao último tema.
O terceiro “p” é o que está presente nas mais variadas formas de expressão das personagens: a política. Para Kundera, a política se expressa até nos mínimos detalhes e em todas as ocasiões. É a política que define o sexo, que define as relações de poder e que impiedosamente exerce influência nas emoções. E é por isso que o escritor elege, poeticamente, o riso como uma válvula de escape alegórica. O riso é a expressão do fim, da dor, do inevitável diante do absurdo. É aqui também que o autor traz elementos da sua conhecida predileção pelo erotismo, com passagens que inevitavelmente esbarram no machismo que todos os homens carregam e parecem - como devem parecer - anacrônicas.
Este “O livro do riso e do esquecimento”, primeiro romance escrito na França - mas ainda em checo - pelo exilado Kundera é o testemunho de uma necessidade humana: a de contar. Milan Kundera conta porque é necessário saber, é necessário refletir, pois no fim tudo não passa de histórias e delas, como o romancista sabe muito bem, o tempo não se desfaz.