Lucas 14/02/2021
O universal e nefasto alcance da violência
Praticamente todas as gerações da humanidade, se tomadas em seus respectivos contextos históricos, trazem consigo a existência de personagens únicos. Normalmente, eles se notabilizam pela controvérsia: suas ações despertam ódio e desprezo em uns, orgulho e devoção em outros. A literatura e o cinema ao longo das décadas também foram capazes de criar personagens assim: Edmond Dantès (O Conde de Monte Cristo, 1844), Rodion Raskólnikov (Crime e Castigo, 1866), Anna Kariênina (em romance homônimo de 1877), Don Vito Corleone (O Poderoso Chefão, 1967), entre outros vários exemplos, sustentam-se e eternizam-se num pilar de controvérsia. Nunca haverá nenhuma conclusão definitiva a respeito destes e de outros símbolos; eles nunca terminam de dizer a que vieram. Personagens reais com essa característica também são vários, mas, citando apenas um que, indiscutivelmente, era controverso e que está mais próximo dos brasileiros, têm-se Getúlio Vargas (1882-1954): quase sete décadas após a sua morte, ainda não se pode tecer um julgamento taxativo e contundente sobre suas ações.
É nesse mesmo pilar de controvérsia que se sustenta o colombiano Pablo Emilio Escobar Gaviria (1949-1993), narcotraficante que deixou um rastro de mortes, destruição de famílias e lendas urbanas (muitas delas verídicas) ao longo dos seus quase vinte anos de "carreira" (sem ironias) criminosa. No auge de seu poder (início dos anos 80), ele chegou a ser considerado um dos homens mais ricos do mundo pela Revista Forbes. Na história da América do Sul, talvez nenhum bandido tenha exercido tamanho poder diante das instituições governamentais e jurídicas: seu rosto esteve por vários anos em lista de criminosos de alto risco procurados pela Interpol. Ao "exportar" drogas (diga-se cocaína) para os Estados Unidos, tornou-se até uma pauta relevante dentro da política externa da grande nação do mundo. Foi deputado, orquestrou o assassinato de juízes e ministros colombianos (e alguns familiares de personalidades importantes do país), sequestrou, protagonizou uma guerra no submundo do crime contra o cartel de Cáli (outro "polo" ilícito da Colômbia daqueles tempos, com Escobar e outros sócios sediados na cidade de Medellín) até, entre outros empreendimentos, ter sido morto por policiais numa emboscada no subúrbio de Medellín, num local que contrasta com o luxo ostentativo na qual ele viveu por mais de quinze anos.
Todas essas são informações já batidas: Pablo Escobar tornou-se nos últimos anos protagonista de várias séries, documentários e livros; um destes últimos, lançado no Brasil pela Editora Planeta em 2015, é a obra Pablo Escobar: Meu Pai, escrita por Juan Pablo Escobar (1977-), filho do narcotraficante e que assistiu de perto à ascensão e queda do seu pai.
Nesta toada, presume-se difícil a missão do autor. Logo no início, ele propõe-se a descrever de forma preponderante o "pai" em detrimento do "criminoso", que são dois personagens distintos ao extremo. Por mais que Juan Pablo faça vários pedidos de desculpas aos atingidos direta ou indiretamente pelas ações do "criminoso", o que prevalece é o olhar do filho para as ações do pai, tentando justificá-las ao menos parcialmente em momentos pontuais. Ademais, o autor era uma criança durante o auge do poderio de Pablo Escobar, sendo que faltou, ao meu ver, um maior aprofundamento, talvez em função de problemas naturais de ordem cronológica e prática, em relação à estrutura organizacional que formou o império de Escobar. Os relatos que ele traz nessas descrições, de como se formou todo o aparato econômico, militar, jurídico, político e financeiro do traficante passam a impressão nítida de serem restritos ao que ele deve ter ouvido em histórias familiares. Trazer resultados de pesquisas (que ele diz que realizou para fazer o livro) históricas sobre esse aspecto estrutural de Pablo Escobar não estaria, contudo, em consonância com o tom que ele usa para o livro, desde suas primeiras páginas. Ou seja, resumidamente, o livro Pablo Escobar: Meu Pai, apesar de ser escrito por alguém muito próximo do narcotraficante, não traz muitas informações detalhadas de acordos e negociatas que o chefe do cartel de Medellín fez para instituir seu domínio. Ele aborda um novo horizonte dentro da vida de Escobar: a sua família, e é este um dos grandes méritos da narrativa.
Pablo Escobar casou-se às escondidas em 1975 com Maria Victoria Henao, uma menina de classe média com 15 anos à época. Em 1977, no início do "boom" das atividades ilegais, eles tiveram o primeiro filho, Juan Pablo (autor do livro) e, em 1984, veio a segunda criança, Manuela (que nasceu no Panamá, em meio a uma das diversas fugas das autoridades que a família foi obrigada a fazer). O tom familiar da narrativa fica claro nos primeiros três capítulos, quando Juan Pablo (que também é conhecido como Juan Sebastián Marroquín Santos, nome que ele adotou de forma legal para evitar perseguições) tece, nos primeiros anos após a morte do pai, os desdobramentos familiares em torno de heranças, bens e outras questões pessoais que levaram a rupturas dentro da família paterna. Dignos de nota nesses momentos são também os acordos que a família de Escobar teve que fazer no submundo do crime (diga-se com o grupo rival de Pablo Escobar, o cartel de Cáli) para a garantia de sua sobrevivência (literal), num mundo marcado pela violência e vingança, ambas num estilo "corleônico". Assim, se o livro demora a adentrar na vida de Pablo Escobar, o preâmbulo da essência do que será relatado é marcado por uma narrativa angustiante. O epílogo volta a abordar essas questões mais contemporâneas, desta vez mencionando de forma mais particular as dificuldades imensas enfrentadas por Juan Pablo, sua esposa e sua mãe para desvincular-se ao máximo da imagem do seu sobrenome pátrio.
Por abordar o seio familiar de Pablo Escobar, um perseguido por praticamente todo tipo de autoridade que se possa imaginar (e de forma justa, diga-se), a obra abre os olhos para a complexidade intrínseca a um criminoso. As pessoas, seja por falta de oportunidade, por ambição (foi o caso de Pablo) ou por influências externas, entre outros aspectos, entram, voluntária ou involuntariamente, no mundo do crime. Ao transporem a linha do legal, estão, em qualquer sociedade séria, cometendo atos que prejudiquem outras pessoas, tanto em termos materiais como pessoais. O caso de Pablo Escobar foi uma hecatombe, ele provocava as autoridades com sua astúcia e poder de persuasão/suborno; caso não tinha suas vontades atendidas, a vingança era sangrenta, sendo que muitos inocentes pagaram por ela (os inúmeros atentados à bomba em locais mais públicos visando apenas um alvo específico na guerra contra o cartel de Cáli são uma prova disso). Então, a perseguição de órgãos oficiais (a polícia e o exército, basicamente) ao narcotraficante não pode ser criticada. Mas, em casos assim onde há tanto ódio envolvido, é preciso que se pense no criminoso não somente como um infrator, mas também como uma pessoa que tem familiares, crianças, cônjuge, em seu redor, que muitas vezes estão alheios aos crimes cometidos pelo (a) pai/mãe ou marido/esposa. Desse modo, antes de difundir a caça a criminosos, com aspectos bélicos, é preciso entender que essa questão sempre é complexa. Não é usar disso como justificativa para as ações hediondas ou para os tais "direitos humanos", mas sim racionalizar esse tipo de conduta para que atinja o menor número de pessoas possível. Que tipo de ameaça à autoridade uma menina de 8, 9 anos pode representar num meio público, além do seu sobrenome? Qual a culpa de um garoto de 13 anos, que nunca se envolveu em atos ilícitos, nos crimes sangrentos e variados cometidos pelo pai? São todas reflexões interessantes que o livro traz e que são associadas ao já recorrente contexto atual, que preza pelo ódio apaixonado a pessoas com o mínimo de suspeição em determinados fatos.
Pablo Escobar: Meu Pai mostra uma face familiar do maior narcotraficante da história, expondo suas diversas camadas: desde o criminoso sem pudor ao cidadão que ajudava os mais necessitados de diversas formas (não necessariamente todas elas lícitas), passando pelo pai esforçado e pelo marido infiel. Sua leitura, que não deve ser entendida como uma biografia propriamente dita, mas sim o relato do filho de um homem inegavelmente influente, é válida por demonstrar esse lado pouco explorado de Pablo Escobar que, como todo personagem controverso, possui uma história de vida que nunca será esgotada.