Acad. Literária 28/12/2015
RESENHA - Peter Pan tem de morrer
Um rico empresário no início de uma promissora carreira política sofre um atentado durante o enterro de sua mãe. A bala de fuzil, disparada de um prédio muito distante, destrói boa parte de seu cérebro, deixando-o num estado vegetativo, terminando por matá-lo durante o julgamento da principal e única suspeita pelo crime: a esposa infiel. Com o homem morto, a mulher condenada e sentenciada pelo crime, estaria encerrada a história. Mas não estava. Quando Jack Hardwick, um ex-investigador do Departamento de Polícia de Nova York, procura Dave Gurney, detetive aposentado, pedindo sua ajuda para provar que o processo de acusação e consequente condenação da viúva havia sido fraudulento, a investigação independente que se inicia sugere que há muito mais por trás desse crime tão chocante, e que nem tudo é o que parece. E, pior que tudo, a trilha parece levar a um assassino incomum e muito, muito perigoso.
Peter Pan tem que morrer é um thriller policial cheio de suspense, mistérios e reviravoltas. A princípio, Dave Gurney está tentando (um tanto contra sua vontade) se adaptar a sua pacata vida rural nas montanhas. Mas a chegada intempestiva de Jack Hardwick e o caso que ele traz consigo acabam por originar muito mais agitação que o detetive aposentado esperava e, com certeza, bem mais que Madeleine, sua esposa, gostaria. Ressentido por sua expulsão da corporação, Hardwick deseja entrar com uma apelação para o Caso Spalter (marido assassinado, viúva condenada e sentenciada pelo crime) e provar que todo o processo de acusação havia sido fraudulento. Mas para Gurney, provar a ineficiência (ou a fraude deliberada) do Investigador Chefe não é razão pela qual ele aceita entrar no caso. Ele precisa saber se a mulher é inocente. E, mais que tudo, ele precisa saber o significado por trás daquela expressão de terror nos olhos de Carl Spalter (a vítima), na foto tirada durante o julgamento, pouco antes de sua morte. Assim, com motivações muito diferentes, Gurney e Hardwick embarcam numa investigação independente do caso, uma busca que mostra que o inquérito original negligenciou muitos detalhes e aspectos importantes e, ao que tudo indica, ignorou propositalmente vários outros, tudo com o objetivo de incriminar a viúva assumidamente infiel, Kay Spalter.
Mergulhando cada vez mais fundo nesse crime tão estranho, Gurney percebe que nada ali parece fazer sentido. São muitas as pontas soltas. São muitas as incongruências. São inúmeros os "ses" e os "porquês". Para Gurney, desde o início fica claro que o tiro disparado contra Carl Spalter foi obra de um profissional. Então o caso, e toda a história do livro em si, giram em torno de três perguntas fundamentais: quem é o assassino?; quem encomendou o assassinato?; e porquê?
O autor valeu-se de um recurso interessante nesse livro: a identidade do assassino é revelada bem cedo na história. Então, a primeira pergunta fundamental é parcialmente respondida logo de início. Mas a parcialidade da revelação torna-se o motor fundamental para a trama. Ok, eu explico. Apesar de o nome (ou apelido) e a assustadora fama do assassino ser revelado, ninguém (nem mesmo a Interpol) conhece sua aparência ou sua origem. Sabe-se apenas que ele é muito caro, muito bom no que faz, especializado em alvos impossíveis e praticamente impossível de identificar e capturar. E isso torna a trama mais e mais complicada. Ainda mais complicada quando o misterioso assassino começa a enviar "recados" macabros e assustadores para que Gurney e sua pequena equipe informal pare de investigar o caso. É nesse ponto que a história começa a ter uma sucessão de reviravoltas, com muita coisa acontecendo ao mesmo tempo e as descobertas de vários crimes estranhos conectados ao caso Spalter. Uma teia incrível de conjecturas e novos fatos é formada até chegar a um final que, vale ressaltar, foi eletrizante!
A verdade é que Peter Pan tem que morrer é muito fascinante. Com tantas possibilidades, tantos mistérios e tantas reviravoltas, é impossível impedir a mordida da pulguinha da curiosidade. John Verdon, o autor, consegue fazer com que o leitor progrida rapidamente na história, virando uma página após a outra vorazmente. Muito disso se deve à consistência da trama, mas também muito disso se deve ao ritmo narrativo que se acelera progressivamente e à combinação peculiar dos personagens. Alguns coadjuvantes importantes como Kay Spalter, Jack Hardwick e até a vítima Carl Spalter, mesmo não sendo detalhados a fundo, tem os traços marcantes de suas personalidades bastante evidenciados no livro. O antagonista, ainda que misterioso, também recebe tratamento parecido, deixando satisfatoriamente claro o padrão de raciocínio de sua mente incomum e um tanto perturbada. Já o protagonista Dave Gurney é bastante esmiuçado. Algo curioso é a inegável semelhança entre ele e o protagonista da série "Dr. House" no que tange às motivações de ambos para o trabalho.
Embora muito focado e obcecado em "resolver o quebra-cabeça", Gurney é sim um tanto recluso e um pouco avesso a interações sociais, mas não chega nem perto de alcançar o nível de antipatia do rabugento Dr. House, o que faz dele um personagem muito mais carismático.
É importante ressaltar que Peter Pan tem que morrer é o quarto livro de uma serie batizada de "Série Dave Gurney" em homenagem ao detetive protagonista. Mas é igualmente importante ressaltar que cada livro é fechado em si mesmo, ou seja, cada livro tem uma história independente. Embora eu não tenha lido os outros volumes da serie e só tenha percebido que se tratava de uma ao pesquisar sobre o autor para construir essa resenha, não senti qualquer prejuízo na minha compreensão da trama. Lendo as sinopses dos predecessores, percebi que esta obra faz referência ao livro imediatamente anterior – "Não Brinque com Fogo" – de forma muito natural, apenas citando um caso passado em que o protagonista e seu "parceiro" Jack Hardwick trabalharam. Da maneira como a trama foi construída, e acredito que os demais sigam a mesma lógica, não parece haver a obrigatoriedade de que a leitura siga a ordem de publicação dos livros. Essa estratégia é algo muito recorrente em series policiais clássicas como Sherlock Holmes (de Sir Arthur ConanDoyle) e Hercule Poirot (de Agatha Christie).
Narrado em terceira pessoa, a trama tem foco em Gurney e em suas deduções e descobertas, sempre acompanhando os passos desse personagem. Exceto por dois trechos, dois prólogos (sim, isso mesmo, dois prólogos: um evidentemente no começo do livro e outro abrindo a quarta e última parte, antes do capítulo 54!) que focam no estranho assassino. A obra é composta por 62 capítulos divididos em quatro partes, cada parte vinculada à resolução de um aspecto importante do crime. Não há erros evidentes na tradução ou na revisão. A capa é simples e remete aqueles jogos de montar palavras através de letras soltas, bastante condizente com a temática policial. Mas há um crítica importante a ser feita: embora a identidade do assassino não seja o principal mistério da trama, o título do livro (transcrição literal do original em inglês "Peter Pan Must Die") entrega muito mais do que deveria.
Assim como o detetive protagonista de seus livros, John Verdon abandonou a vida agitada da cidade grande para desfrutar a tranquilidade da vida aos pés das Montanhas Catskill. Verdon foi publicitário, marceneiro e chegou a tirar uma licença de piloto comercial. Em seu paraíso rural, seu amor pelos romances policiais de autores consagrados como Conan Doyle, Ross Macdonald e Reginald Hill floresceu. Foi por sugestão de sua esposa que John Verdon deixou de apenas ler histórias policiais para escrever histórias policiais. E assim, com o sucesso absoluto de seu livro de estreia "Eu sei o que você está pensando" (Think of a Number, no original) e de seu astuto protagonista, Verdon trouxe para a literatura contemporânea uma serie policial nos moldes clássicos do gênero.
Este livro vai agradar em cheios os fãs de histórias detetivescas que usam e abusam do raciocínio do leitor para decifrar as pista. Os fãs da literatura policial clássica certamente não irão se decepcionar. Aqueles que gostam de personagens intrigantes também irão encontrar nesse livro alguns belos exemplares. Por fim, aqueles que apreciam uma narrativa bem construída, terão uma leitura bem mais prazerosa.
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