Betinha 10/01/2018Grande sertãoHoje vou escrever um pouco sobre o belíssimo livro “Outros cantos”, da autora Maria Valéria Rezende e não posso começar sem falar um pouco sobre sua trajetória. Assim como a personagem principal desse livro, Maria Valéria é professora e teve experiência com a educação no meio rural nordestino. Isso é muito forte para um livro em que a personagem principal descobre o sertão, a pobreza e a beleza da vida sertaneja. O mergulho de Maria, a protagonista, nesse meio parece também uma viagem pelas memórias da autora.
Vamos para a história?
Quando jovem, Maria viveu por algum tempo no vilarejo Olho D’Água, com o propósito de alfabetizar jovens e adultos. Após 40 anos decide voltar ao local e, em sua viagem de ônibus, vai recordando sua estadia anterior e as pessoas que conheceu ali, além de outros cantos por onde passou e viveu.
É assim que descobrimos Fátima, mulher sofrida que suporta o fardo de viver com pouca água e comida e com muito esforço físico para garantir o sustento de seus filhos, e que acolheu Maria em sua chegada.
"Encontrei ofício e família naquele canto escondido. Podia ficar, preenchida de estranha euforia, e, subitamente livre de uma espécie de cegueira frente ao desconhecido, comecei a ver cada um, cada coisa, cada movimento na sua unidade e seu sentido. Pelas mãos de Fátima cheguei ali de verdade."
Diariamente Maria acordava cedo, buscava água para o dia, tomava café com Fátima e seguia para ajudar no tingimento dos fios, utilizados para tecer as redes para o “Dono”. Esse homem era dono das terras, da água e do trabalho.
"Nus vieram ao mundo e nele permaneciam, quase nus e inocentes, não por serem incapazes de fazer o mal, mas por serem ignorantes do mal que lhes podia ser feito."
Sua rotina é quebrada quando um vaqueiro aparece no povoado e desperta Maria para uma parte importante de sua vida: o rapaz de olhar penetrante que encontrou em diversos pontos do mundo. Ele sempre deixa sua alma marcada a cada visita, além de uma prenda que a moça guarda em uma caixinha no fundo de seu baú.
"(...) puxei lá do fundo a caixinha de madeira finamente entalhada por meu avô para servir-me de porta-joias. Ao abri-la, com o coração assustado batucando na garganta, depois de tanto tempo a carregá-la comigo sem mirar seu conteúdo, dei logo com um vistoso emblema niquelado, arrancado de uma motocicleta Harley-Davidson."
Maria entra em um estado febril, recordando não apenas o homem, mas o motivo de estar ali. Meses passaram e nenhum sinal dos materiais e da escola onde ela daria suas aulas.
"A vontade de chorar que eu retinha, por pejo, ganhou novo motivo além da comoção pela beleza de tudo aquilo. Poderia eu manter o que me trouxera para ali, despertar-lhes ainda esperanças terrenas quando o vivido só lhes permitia situá-las no céu e assim já se haviam consolado por séculos? Não ouvira tantas vezes dizer que a vida era plantar na terra para colher no céu?"
Embalada pela narrativa da Maria Valéria eu viajei pelo sertão e conheci personagens cuja simplicidade me encantou. O livro tem o tamanho certo e a medida exata de memórias para compor uma belíssima história. Espero que vocês gostem dele tanto quanto eu gostei!
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