Luis 14/12/2014
Nos passos do elefante
È impressionante como partindo-se muitas vezes de um detalhe pitoresco e inusitado, a mente dos grandes escritores é regada com a semente única da criação sublime. Saramago, na longa carreira, saudada com o Prêmio Nobel de 1998, deu provas dessa extraordinária capacidade praticamente em cada linha que produziu. Um de seus últimos livros, “A Viagem do elefante” (Companhia das Letras, 2008), é prova irrefutável dessa tese.
A ideia surgiu ao autor lusitano a partir de um jantar em Salzburgo após uma palestra proferida na universidade local. Levado pela professora Gilda Lopes Encarnação ao restaurante “O Elefante”, Saramago teve sua curiosidade aguçada por várias pequenas esculturas, colocadas alinhadas, e que reproduziam monumentos europeus situados entre Lisboa e Viena. Ao perguntar o significado daqueles objetos, o autor foi informado de que representavam um episódio histórico pouco conhecido : a viagem de um elefante, de Portugal à Áustria, ocorrida em 1551, sendo o animal um presente do monarca português ao rei austríaco. Munido de informações da época e de seu invulgar talento, José Saramago transformou esse episódio em um breve e espetacular romance, herdeiro de todas as melhores tradições de sua obra seminal.
A trama em si é de extrema simplicidade : D.João III, no intuito de impressionar a alta corte Vienense e compensar o vulgar presente dado por ocasião das bodas do Arquiduque Maximilliano, decide aproveitar a presença do primo (D.João era casado com Catarina da Áustria, aparentada de Maximiliano. O neto do casal seria o Rei D.Sebastião, morto em Alcácer Quibir e talvez o mais mítico entre os soberanos portugueses) em Vallovid, na Espanha, para oferecer um presente original e mais valoroso. Na falta de algo do gênero. Catarina e o esposo se lembram de Salomão, o elefante, que vivia a comer, beber e dormir, sem serventia aparente ao reino.
A partir daí, com a organização de uma expedição para o transporte do elefante, com direito à assistência constante de um tratador, o indiano Subhro, o grande personagem do livro, Saramago desenvolve a histórica viagem, dando forte vazão à sua verve irônica e iconoclasta, não poupando em nenhum momento a carolice da Corte d`além mar. Especialmente simbólico é o episódio em que um padre de uma pequena cidade por onde passa a comitiva, solicita a Subhro que faça um “truque” com o animal, ensinado Salomão a ajoelhar diante de um sacramento para reforçar a fé do povo. O escritor usa e abusa de sua velha implicância com o clero ao colocar o pobre elefante a serviço das politicagens de batina. Sem sombra de dúvidas, a grande passagem do livro.
A tinta fortemente crítica do Nobel português, pinta ainda com as cores do ridículo o quase incidente diplomático entre os exércitos dos dois países quando da troca de guarda de Salomão, em Vallovid. O oficial lusitano, seguindo estritamente as ordens do trono, não abre mão de entregar diretamente o presente ao Arquiduque, objetivo obstruído com arrogância pelos militares arianos. A divergência por pouco não se transforma em fósforo a acender a fogueira da guerra, contornada na última hora por certa negociação, facilitada pela “compreensão” dos homens de D.João III em face da evidente superioridade bélica dos austríacos. Tivemos a quem puxar no nosso complexo de vira lata.
Rebatizado de Solimão por Maximiliano, o valente e cansado elefante segue a sua trajetória de Vallovid à Viena, passando pela Itália e sendo alvo de demonstrações de pasmo por parte das populações locais, que nem sequer imaginavam a existência de uma criatura como aquela. Em Viena ocorre a cena final, com a comitiva recebida em festa, e um ato heroico de Solimão que o eleva a categoria de heróis do povo.
A criação de “A Viagem do Elefante” foi registrada no documentário “José e Pillar”, lançado em 2010 e que acompanhou dois anos da vida do casal. Já na época da filmagem com pouco mais de 80 anos (o escritor morreria com 87, alguns meses antes do lançamento, em novembro), Saramago foi exemplo de inquietude intelectual que jamais se amansou com o tempo. Se um elefante incomoda muita gente, um Saramago incomoda muito mais.