Bruno Oliveira 30/11/2014Sobre o tempo e a memória nas Confissões de AgostinhoDiz Agostinho que: “Sem dúvida que a memória é como uma espécie de estômago da alma” (pág.467) e, apesar de recorrer à uma metáfora corpórea, o filósofo não pretende que a memória seja uma faculdade do corpo, na verdade, ela perpassaria o corpo sem se confundir com ele por existir apenas na alma.
Como não tem forma corpórea, a memória também não é um "local" onde está "armazenado" aquilo que vivemos. Nossas lembranças não podem ser recolhidas da memória como se puséssemos nossa mão dentro de um recipiente para retirá-las de lá, pois não estão situadas no espaço físico como corpos.
Além disso, nossas lembranças não estão sujeitas ao tempo tal como as sensações que as produziram, pois enquanto as sensações desaparecem tão logo certo período decorra, as lembranças delas permanecem indefinidamente e podem, inclusive, reaparecer subitamente quando não são chamadas.
O que significaria, então, representar a memória como “uma espécie de estômago”?
Como já dito, a memória não obedece às mesmas relações e ao mesmo comportamento que o corpo, consequentemente, apresentá-la em termos fisicalistas tem apenas a função pedagógica de usar aquilo que conhecemos para entender o que não conhecemos. Quando Agostinho usa o termo estômago, por exemplo, podemos reconhecer na memória sua função de “armazenamento” ou algo semelhante à essa função que o estômago também exerce, em outras palavras, o filósofo pretende afirmar que a memória retém coisas em si – mas, como a memória não é corpo, o que seriam tais coisas que ela retém? Diz ele que são imagens daquilo que percebemos, ou seja, não são as próprias coisas observadas mas a percepção que tivemos delas atrelada à nossa alma.
Por meio disso, Agostinho defende a tese de que nossas lembranças não são perdidas com a ação do tempo, porém permanecem na alma como que “alojadas nela". Estando fora da relação que o corpo mantém com o tempo, a alma poderia perceber e medir a sucessão temporal pela atenção, pela recordação e pela expectativa, retendo em si excertos temporais observados.
A despeito disso, o filósofo não ignora o esquecimento em sua concepção de memória. Em nossa própria experiência de rememoramento somos frequentemente surpreendidos por lembranças de vivências antigas, como se tais imagens sobrevivessem à ação do tempo ao existirem em outra esfera, além disso, por vezes insistimos em tentar recordar algo que ocorreu há muito tempo e tal insistência não é suficiente para fazer com que certa lembrança seja retomada, como se aquilo que se passasse na memória fosse maior que nossa atenção presente para com ela A metáfora do estômago ensina que a memória tem um comportamento próprio e que não é como um arquivo organizado dos fatos, o esquecimento, porém, não é a perda completa dos acontecimentos, como se nossas lembranças desaparecessem junto às sensações que as causaram, o esquecimento é apenas o esquecer atual de certos acontecimentos. Com efeito, embora não nos recordemos de tudo o que já nos ocorreu, tais coisas jamais desaparecerão de nossa alma.
Deus, um ser colocado fora do tempo, seria capaz de observar o mundo sem sofrer esquecimento e sem a necessidade de entendê-lo naquela ordem cronológica a qual a submissão ao tempo impõe. Enquanto nossa mente não tem atenção a tudo o que observa e necessita dividir suas percepções segundo o modo temporal pelo qual as capta, Deus não precisa “contar” o tempo poder compreendê-lo: ele o enxerga em toda sua amplitude, algo possível somente a um ser infinito apartado do mundo.
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