Lucas 12/07/2023
A fantasia cede passagem à realidade: um reencontro de Gabriel García Márquez e da Colômbia dos anos 1990 consigo mesmos
Antes de se tornar o maior escritor do século XX (na opinião emotiva do autor da presente resenha), o colombiano Gabriel Jose García Márquez (1927-2014) foi por muitos anos jornalista e correspondente internacional (o que o fez adotar o México como sua segunda casa, inclusive). Ao explodir como escritor e símbolo máximo do realismo mágico em Cem Anos de Solidão (1967), "Gabo" trazia em suas letras uma inquietude e inconformismo narrativos, as quais certamente derivam desse seu lado jornalista.
Desde Cem Anos de Solidão, obra que se não foi a primeira de sua carreira literária foi a que lhe garantiu a estabilidade na função única de escritor, muita coisa aconteceu em sua vida (incluindo o Nobel de Literatura de 1982) até outubro de 1993. Nesse ponto, já consagrado literariamente, García Márquez é procurado por Maruja Pachón e Alberto Villamizar, dois compatriotas colombianos, para tratar de um tema tipicamente nacional (e porque não, mundial) da Colômbia daqueles tempos: os sequestros organizados pelo mítico e brutal Pablo Escobar (1949-1993) e sua organização criminosa conhecida como Cartel de Medellín, em referência à cidade que "sediava" seus negócios.
A missão dada a Gabo, a qual ele aceitou com o seu aguçado senso jornalístico, era descrever todas as nuances que envolveram o sequestro de Maruja, cunhada de um ex-candidato à presidência executado pelos traficantes. Mas ao se debruçarem sobre o caso específico de Maruja e seu esposo Alberto (um importante político colombiano da época), eles entenderam que o cativeiro era coletivo: enquanto Maruja e sua cunhada Beatriz (também sequestrada) estavam reclusas, outros oito personagens compartilhavam do mesmo destino incerto. Diante dessa amplificação, que García Márquez trata de singularizar, nasce Notícia de um Sequestro, livro que demorou três anos para ser escrito até o seu lançamento em 1996 e o ultimo trabalho mais relevante do seu idealizador.
Assim, a obra é, antes de seu caráter elucidativo, um retorno de Gabo a suas origens jornalísticas e esse retorno é interessantíssimo. Usando do seu dom narrativo, García Márquez larga da fantasia mágica e delirante que tanto o marcou para escrever um texto sério, crônico e informativo, sem ser apaixonado ou enviesado. Através de suas linhas, descobre-se que a Colômbia do final da década de 1980 e início da década de 1990 era um país acuado em si mesmo. O passar dos anos fez nascer na nação um sentimento de repulsa diante dos desmandos e petulância dos comandantes do multimilionário comércio de drogas. Pressão dos norte-americanos também contribuíram para isso, assim como as infelizes tentativas de Escobar ingressar na política. Diante da impotência perante um adversário que trucidava opositores das mais cruéis maneiras, o governo colombiano chegou a firmar um acordo de extradição com os norte-americanos: os traficantes seriam presos e seriam direcionados aos Estados Unidos para lá responderem por seus crimes. Surgia ali um lema forte, que alimentou a revolta dos criminosos: "É melhor uma cova na Colômbia do que uma cela nos EUA". Os assim chamados "Extraditáveis" passaram a uma ofensiva contra as autoridades civis, sequestrando familiares de indivíduos importantes da sociedade nacional.
É interessante constatar todos estes elementos e a desmistificação de alguns personagens. Pablo Escobar, por exemplo, que nos últimos anos teve um foco "hollywoodizado" em sua biografia (não tratado com inocência, mas sob um verniz mais heroico), aparece várias vezes nas linhas de Notícia de um Sequestro como um negociador astuto, mas Gabo não esquece de descrever aquilo que ele realmente foi: um assassino cruel, com uma frieza que sempre buscava justificar suas mais covardes ações. Personagens políticos, como o presidente da Colômbia César Gaviria, com seus avanços, teimosias e recuos, também são desnudados pela escrita do autor (no caso de Gaviria, recebe ele um tratamento racional, apesar das possíveis divergências políticas que deveriam existir entre o autor e o presidente do seu país). Mas não são apenas esses dois personagens: Gabo conta e descreve toda uma estrutura social e jurídica deficitária até chegar aos sequestros propriamente ditos.
O contexto que é montado é assustador: como pressionar a soltura de reféns sob o poderio de multitraficantes, que matavam autoridades e civis sem o menor pudor, através de explosões, acidentes aéreos e execuções sumárias, por vezes públicas? Como trazer à razão alguém com práticas tão animalescas? Como o Estado deveria cumprir seu papel de combate a esse grupo sem se rebaixar às exigências dos traficantes? É neste processo de busca que se concentra boa parte da narrativa, especialmente com Alberto Villamizar e suas tentativas de libertação da esposa e da irmã Beatriz. Também se foca toda a vivência em cativeiro, especialmente de Maruja que ficou sequestrada por quase seis meses entre 1990 e 1991. Mas apesar dela ser a protagonista de Notícia de um Sequestro, se é que cabe algum papel de protagonismo num livro assim, a obra não se concentra apenas em seus dilemas. Duas mulheres, também sequestradas na época, pontualmente roubam a cena: a jornalista Diana Turbay (1950-1991) e Marina Montoya (1929-1991), irmã do embaixador colombiano no Canadá.
Logo no prefácio, que o autor usa para tecer agradecimentos, o destino das duas já é esclarecido por Gabo: ambas morreram em decorrência dos sequestros. Diana, inclusive, tornou-se uma mártir daqueles anos sangrentos, em função da sua descendência (filha de um ex-presidente da Colômbia) e da sua postura corajosa. Já o desfecho de Marina foi impiedosamente desleixado... Os dois casos reforçam, sob a escrita racional de Gabriel García Márquez, uma crítica às instituições de segurança da Colômbia: se parte importante poderia estar "no bolso" dos Extraditáveis, uma outra parte desses elementos usava de subterfúgios sanguinários nas perseguições aos "soldados" dos narcotraficantes, muitos deles adolescentes. Isso é particularmente verdadeiro inclusive pelo que o livro não narra pormenorizadamente, na fuga que Escobar empreendeu da "prisão" a qual ele "aceitou" se enclausurar após o fim dos sequestros. Mas Gabo não poderia deixar de fazer um relato sólido acerca dos acontecimentos pós-1991 e usa isso para construir um desfecho a altura de um livro jornalístico de tamanha classe.
Se antes da leitura ou no começo o leitor pode torcer levemente o nariz diante de Notícia de um Sequestro, seja pelo seu tamanho considerável para um livro-reportagem (mais de trezentas páginas na sempre boa edição da Editora Record, o que faz dele um dos maiores livros do autor) ou no fato supracitado, de ser uma obra jornalística escrita por alguém tão inventivo, tais premissas se destroem bem rápido. Gabriel García Márquez pinta um quadro nada abstrato do seu país natal, com uma assertividade e capacidade de tornar a leitura viciante que só ele é capaz de proporcionar. E esse cenário deve ser ainda mais bem ilustrado na série da Amazon Prime Video lançada em 2022 e baseada no livro, a qual ainda não assisti, mas é cercada de boas críticas. Tudo isso e muitas outras características aqui não observadas (até para não antecipar o fascínio que Notícia de um Sequestro causa) são elementos mais do que suficientes para recomendar a leitura da obra: Notícia de um Sequestro é Gabo com os pés no chão e uma narrativa que voa alto em termos de qualidade informativa.